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O preço da cabeça de Dirceu

 

Nenhuma arruaça ou estrépito se seguiu ao placar contundente da derrubada de José Dirceu na Câmara. Embotaram-se até, gestos ou comentários, diante de um vazio que não some pela mera retomada das rotinas da casa, quando os ritos se cumprem, por demais, para aspirar-se a qualquer mudança. Pretendeu-se dar conta da crise, por uma lógica primária de compensação política. Mas a cassação aponta a um crescente desconforto-cidadão, que talvez seja o primeiro saldo de um amadurecimento político face aos golpismos moralistas, da tradição do País, reptado pelas eleições de 2002.


Experimentamos, ao longo desses meses, o desgaste do Supremo ou das cúpulas do Legislativo em fugir ao marco jurídico, para os facilitários de sempre em bem das estabilizações cruas ou consentidamente simbólicas, de governo e oposição. O "toma-lá-dá-cá" das cassações ao invocar o argumento complacente do decoro e da ética política abriu agora uma caixa-de-pandora. Onde parar se o critério do abate dos antagonistas mores foi da conveniência da hora no subjetivismo puro da condenação, e esse precedente desabrido torna cada vez mais remota a volta à marca da lei para o desempenho dos mandatos e sua representação.


O castigo de Dirceu levou ao extremo as satisfações à pretendida opinião pública e a cota simétrica do abate de mandatos para satisfazê-lo. O de Jefferson contra o do ex-chefe da Casa Civil. Mas a esquecer-se que o ex-deputado petropolitano foi cassado, por, justamente, não ter provas quaisquer do mensalão, cuja existência foi a razão do abate do petista. Mais que quiprocó, o Congresso assume a contradição, chegada ao grotesco inaudito. Tudo feito e tudo bem se posterguem quaisquer novos processos. Vamos às natalinas, que a memória é curta, porque ninguém é de ferro. Mas a cabeça de Dirceu foi-se, confessadamente sem provas, admitido o seu sacrifício aos deuses estritos da ira política da hora, e não se fale mais nisso.


Se nada incrimina o pretendido arquimentor do mensalão, existente ou não a manobra, provas há que saem da simples suspeição, na corrupção corriqueira, carimbos, retiradas, contracheques, na tarrafa de todos os peixes da operação Valério. A se dar um símile de verossimilhança a derrubada de Dirceu, mais se impõe o expurgo da culpabilidade provada na evidência que se tem, para poder putativamente estendê-la ao ex-chefe da Casa Civil. A se aceitar a supermaquinação do petista passa-se, por força, pela habitual das traquitanas e deslumbres em que a legenda, no poder, tenha incorrido no usual da caixa 2. Seus abusos não eximem nenhum partido, expostos, agora, ao olhar das CPIs - por demais incômodo e retrospectivo - no até onde foi já, no passado, o valerioduto.


Foi em função já da aposta num jogo maior, e em consciência, talvez precipitada, do jogo da renovação política prometido pelo PT, que Dirceu queimou todas as caravelas, na mudança de palco e de expectativa para o seu julgamento. E o fez desde os primeiros minutos da confrontação com Roberto Jefferson, apelando pela consonância da biografia e o direito à sua credibilidade, frente às investidas de sempre do denuncismo visto como obsoleto diante de uma nova exigência cívica nacional. Apostou na desmoralização dos denuncismos oposicionistas frente a um governo de mudança. Tal como renunciou às clássicas malandragens táticas, para salvar uma carreira política tradicional, recorreu ao Supremo para enfrentar a decisão política da corte, a permitir a sua cassação, ao preço até, da inaudita instalação, na República, de um parlamentarismo à brasileira.


Como se imaginar que, ao assumir função de ministro de Estado, em plena competência do Poder Executivo, possa um deputado ser subseqüentemente julgado, pelo que fez como expressão da vontade do presidente, pela Câmara a que retornasse? Qual a sua autonomia se todos os seus atos viessem depois cair sobre a férula do outro poder? É a própria e intrínseca autonomia do Executivo, suposto do Presidencialismo, que se vulnera pela inaudita decisão, tão bem, aliás, condenada pelos votos dissidentes na inquietante decisão do Supremo Tribunal. É a República toda que se vê sobre o império das razões políticas para decidir do exercício do direito de representação, suposto mesmo do nosso Estado de Direito. E é o País da cidadania do dr. Ulysses que espera o recurso contra a cassação e o facilitário político da hora, a transformar o pior Congresso da República no prestador solícito às conveniências do sistema por sobre a garantia da norma como razão de ser do Estado.


A amplitude dada ao oportunismo dos critérios de ética ou de afronta ao decoro parlamentar não implica a acolhida da ditadura da subjetividade e das birras ideológicas em total desapreço aos fatos comprovados por sobre o mínimo objetivo de evidências de onde possa partir as convicções fundadas contra a impunidade absoluta do imaginário condenatório. Deparamos com a anuência tática do Supremo à inversão do princípio básico de que pereça a justiça, mas salve-se a estabilidade do sistema. O uso da conveniência política se transforma em abuso, permanente, por dá-cá-aquela-palha, no desmedido que se abre à degola das cabeças políticas. A de José Dirceu, a permanecer, devolve-nos as noites dos estados de exceção, da vindita das clientelas e do país do "tudo bem" contra a nação da mudança.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 16/12/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 16/12/2005