Nossa convivência política nestes dias com a voz das ruas já ganhou a admiração lá fora pela liberdade deixada às marchas, ajuntamentos e protestos nas cidades-chave do país. Vencemos um teste democrático limite, e até da conduta policial, a acompanhar, quase como um rito, os itinerários da manifestação popular.
Mas o que se leva às ruas como uma proposta de novas políticas públicas e de avanço da dita melhoria coletiva? Repetiu-se, à saciedade, o clamor pelo avanço da educação, da saúde ou da segurança, mas sem nenhum elenco de inovações, ou, sobretudo, com claro desconhecimento do que já está em curso nessas áreas pela administração federal.
Nenhum reclamo, por exemplo, pela reforma agrária, o carro-chefe de ainda duas décadas da consciência popular brasileira. Desde os primeiros dias, o Planalto se antecipou ao "povo na praça" adiantando-se, antes mesmo do conteúdo de reformas, à maneira de fazê-las, logo, através de uma meia reforma constituinte, ou a ida aos plebiscitos.
Identicamente, e diante da contundência da crise, abriu-se, também, a ideia do recall dos membros do Congresso, ou seja, a do encurtamento dos próximos mandatos representativos, reiterando-os, ou não, a meio de seu de avanço exercício. Significativamente, todas as sugestões não tiveram nenhuma ressonância. Continua o povo na praça. Mas, na liberdade deixada, por inteiro, à auto-organização dessas marchas, deparou-se, fora da repressão, o controle do vandalismo e da depredação, nascidos, inevitavelmente, no seio desses atos públicos.
Há mais de um mês, os encontros no Rio vêm a um rito praticamente diário. Mas, cada vez mais, ligado às demandas localizadas, aos aumentos de professores, dos bombeiros e dos próprios policiais, numa reivindicação crescentemente corporativa.
Está em causa o que hoje nos dá a réplica às praças de Madri, ou de Barcelona, ou do Occupy Wall Street.
Há um paradoxo no próprio êxito do governo. Ao fio já de quase uma década, o crescimento do país e da melhoria social criou, fatalmente, um desejo ainda maior de melhoria incontida de nosso wellfare.
Não são marchas por restaurações de direito, ou por privações coletivas, ou por violências ao dito bem comum.
Começam arregimentações nos facebooks contra o protesto. E aí desponta a pergunta: o "país da paciência" rejeitará, indefinidamente, o cansaço, ou ainda há esperança de que possa sumir, de morte morrida, o protesto difuso?
O Globo, 19/9/2013