Lamentemos inicialmente que a morte tão cedo tenha levado o acadêmico José Guilherme Merquior, quando ele estava na plenitude do seu talento e muito poderíamos esperar da sua inteligência fulgurante. Trata-se do meu antecessor direto na cadeira nº 36 da ABL. Mas não o conheci pessoalmente.
Ele foi devorado pela curiosidade que, como Eça dizia, saborosamente, nos leva a descobrir a América ou a olhar pelo buraco da fechadura. Merquior era da raça dos primeiros. Carioca, foi diplomata, polemista, ensaísta, crítico literário e, numa palavra, polígrafo.
A diplomacia é vocação rara, pois o diplomata escolhe exílio voluntário e nele permanece longos anos. Merquior foi embaixador precoce. Serviu na Secretaria de Estado, nas embaixadas em Londres, Bonn, México e Paris, deixando rastro inesquecível da vasta soma de conhecimentos que reuniu com sofreguidão.
Considero difícil identificar o diplomata e o polemista na mesma pessoa. Merquior foi tão ágil polemista quanto perfeito diplomata. Porque não é polemista quem quer, mas quem pode sê-lo. Na Academia, foram eles numerosos e destemidos. Lembro Rui Barbosa, Eduardo Prado, José do Patrocínio, Alcindo Guanabara, Carlos de Laet, Sílvio Romero e Assis Chateaubriand. Merquior foi polemista até os últimos dias de sua vida.
Ensaísta, suas obras merecem a perenidade das estantes. Não nos deixou obra volumosa em número, mas todos os seus livros dão o testemunho de uma inteligência superior, de uma formação característica nas grandes universidades da Europa e dos Estados Unidos. Qualquer assunto ganhava com ele dimensão autorizada. A Academia Brasileira de Letras o acolheu em seu quadro de membros efetivos como um dos valores mais altos da inteligência brasileira.
Mas esse jovem, que atropelou a vida apressadamente, foi escolhido pela morte e partiu aos 49 anos de idade. Porfiou em fazer os brasileiros se atualizarem pela informação. Prosseguiu no trabalho que outros, mais velhos, tinham feito antes, o da introdução do Brasil na era da modernidade, da qual necessitamos para superar a ignorância, vencer a pobreza e erguer a nação ao patamar das mais desenvolvidas.
Seu talento e seu patrimônio cultural erigiram-no em crente fiel no poderio da inteligência e da palavra. Como os mais conhecidos escritores da língua portuguesa, Merquior era dono de um estilo pessoal na exposição de suas idéias. Escrevia bem. Sua língua, como queria Chomsky, tinha aspecto inventivo.
Dos seus ensaios reunidos em Crítica, temos um Merquior de 23 anos a um Merquior de 48 anos. Colocando-se acima e além de modismos, Merquior fundou-se na filosofia de Kant, para quem a crítica é positiva pelo uso prático da razão.
Em O exilir do Apocalipse, ele obedeceu ao modelo de Walter Benjamim e, proclamando-se humanista, quis o humanismo nos etos brasileiros.
Em O marxismo ocidental, focalizou a classificação de Merleau-Ponty dentro do firmamento marxista e estudou um corpo de idéias, que abarcam a obra de autores tão diversos quando Lukács, Althusser, Sartre, Gramsci e Habermas. Sustentou que não há um único marxismo, porém vários, desde o marxismo de Lenin e Stalin até o marxismo ocidental, que nasceu no começo da década de 20, como um desafio doutrinário às teses soviéticas.
Em Liberalismo - Antigo e moderno, apresentou-nos os autores que formaram e difundiram a filosofia liberal e sua prática, de Locke a Raymond Aron, este um autêntico sucessor e continuador de Tocqueville, embora com maior ascendência na universidade e nos meios de comunicação.
Merquior classificou Marx de agitador de idéias, tributário de Hegel. Estudou Freud, a psicanálise, a teoria de Jung, o existencialismo de Sartre. Houve quem dele discordasse. É o destino dos polemistas.
Com a sua morte, tombou uma das colunas da inteligência brasileira. Teremos de esperar que outra se erga para substituí-lo.
Jornal do Brasil (RJ) 4/10/2006