"Será que precisamos de regiões hegemônicas, de figuras hegemônicas?"
Quando eu estudava física, no colégio (isso mais ou menos na pré-história) falava-se de algo chamado o poder das pontas, ou seja, a capacidade que têm objetos pontiagudos de atrair e de concentrar energia, o para-raios sendo disso um exemplo clássico. Mas o poder das pontas pode servir de metáfora para muitas situações, inclusive na política, coisa que pode ser lembrada nos 80 anos da Revolução de 1930, que, segundo o historiador José Murilo de Carvalho, colocou o Brasil no rumo da modernidade. O movimento teve início num estado que era, e é, a ponta do Brasil, o Rio Grande do Sul, uma ponta encravada, por assim dizer, no Cone Sul da América Latina, no antigo domínio hispânico, do qual na verdade fazia parte de acordo com o Tratado de Tordesilhas. A região foi conquistada a ferro e fogo, e isso inaugurou uma tradição guerreira que se prolongaria por séculos, simbolizada na figura do gaúcho e expressa numa forte tradição. Por sua história, e por sua posição geográfica, o Rio Grande do Sul sempre teve uma forte consciência de sua identidade, o que aliás gerou, em 1835, um movimento de rebeldia contra o governo central, a Revolução Farroupilha, que, a rigor, foi derrotada, mas que até hoje é celebrada no dia 20 de setembro. Por outro lado, e por causa da enorme distância que o separa do centro do país, as elites gaúchas sentiam-se marginalizadas nos grandes processos decisórios que, nos anos 1920, dependiam sobretudo da política café-com-leite, da união entre São Paulo e Minas Gerais.
A revolução de 1930 foi o resultado dessa inconformidade. Teve como líder uma figura absolutamente singular, Getúlio Vargas. Existe uma tendência comum de considerá-lo como caudilho, mas o termo não é suficiente para explicar uma personalidade tão complexa. O caudilho latino-americano clássico é um indivíduo ambicioso, um fanfarrão, que tem uma sede ilimitada de poder. Eventualmente um caudilho pode ser derrotado, e aí em geral segue para o exterior, onde pode ter uma existência regalada à custa dos capitais previamente acumulados.
Getúlio era diferente. Na verdade, e segundo Gilberto Freyre, não era um gaúcho típico, mas sim um missioneiro; e a região das Missões, como sabemos, foi marcada pelo trágico fracasso da notável experiência jesuítica, e a atmosfera ali não era marcada pelo otimista orgulho de cidades como Bagé e Alegrete (este nome já é significativo). Getúlio era um homem culto, influenciado pelo positivismo que representava então a vanguarda do pensamento filosófico; e era, sobretudo, um melancólico, o que veio a explicar seu suicídio e mostrar como ele era diferente: caudilhos não se suicidam. Essa inteligência e a capacidade de liderança foram muito importantes para o êxito do movimento. Saindo do Rio Grande, de trem, as tropas gaúchas ocuparam com êxito o Rio de Janeiro, onde foram recebidas com entusiasmo pela população. Um significativo e pitoresco episódio então ocorreu: naquele 3 de novembro de 1930, dia da posse de Getúlio, os gaúchos amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco. O obelisco é um clássico símbolo fálico (basta lembrar aquele, gigantesco, de Buenos Aires) e a cena era um recado, mostrando quem era o macho, quem mandava.
Como os déspotas esclarecidos do passado (e o marquês de Pombal vem logo à mente), Getúlio deu início a uma série de reformas modernizadoras, impulsionando a indústria nacional e criando um sistema social de apoio à nascente classe trabalhadora brasileira; um misto de populismo com Estado de bem-estar social, cuja preservação, na Europa, tem gerado tantos conflitos. Por outro lado, não vacilava em reprimir, em esmagar os inimigos. Havia censura, adversários do regime eram presos. Num certo momento, teria manifestado simpatia pelo corporativismo fascista de Mussolini, (mas, e sobretudo, por pressão norte-americana) acabou entrando na guerra contra os países do Eixo, a derrota dos quais precipitou um processo de democratização em todo o mundo que acabou atingindo o Brasil: em 1945 Getúlio deixava o poder. Voltou anos depois nos braços do povo, mas aí foi vencido por hábeis inimigos e acabou colocando fim à própria vida. Um fim simbólico para o poder da ponta do país, que permite colocar a questão: será que precisamos de regiões hegemônicas, de figuras hegemônicas? Não será muito melhor a situação em que todos possam se manifestar igualmente, independente de onde vivam? Ou será que temos de amarrar cavalos em obeliscos para que nossas existências sejam notadas?
Correio Braziliense,2/11/2010