Era brinquedo de pobre, mas todos, até mesmo os meninos ricos, tinham o seu pião. Parece que não existem mais, mas, na minha rua, o guri que não tinha o seu pião e não era mestre no ofício de rodá-lo no chão ou na palma da mão tornava-se qualquer coisa de abominável, um ser hediondo execrado pelos outros garotos.
Nunca fui bom de pião, insistia com o pai, ele comprava os melhores, mas eu não os fazia girar com a perícia adequada. Tantas levei pela cara que o pai, para me consolar, falou mal dos piões, de todos os piões ("é brinquedo de moleque") e deu-me uma carrapeta suntuosa, com frisos amarelos, azuis e vermelhos, fazia um som civilizado quando rodava.
E era fácil de manejar. Bastava dar corda e ela se empinava, rodava loucamente, imóvel em seu eixo de lata, e o zumbido que fazia, cortando o ar, parecia o fundo musical de um pedaço do paraíso.
É bem verdade que os outros guris me olhavam desconfiados, achando que carrapeta era coisa aveadada e, pensando bem, eu próprio também achava o brinquedo meio suspeito.
Até o dia em que um garoto chegou-se para o meu lado e, como se fizesse uma proposta indecente, sugeriu que trocássemos de equipamento. Ele me daria o seu pião, o mais famoso e letal daquela rua, que partia ao meio os piões adversários. E eu lhe daria a carrapeta faiscante, que girava como um planeta sonoro enquanto lhe durava a corda.
Cheguei em casa e o pai descobriu o péssimo negócio que o filho fizera. Num primeiro momento, pensou em procurar o guri e desfazer a troca. É evidente que se aproveitara da minha ingenuidade ou da minha cobiça em ter um pião igual ao dos outros.
Pensou melhor. Olhou-me fundo, avaliou o pião escalavrado e sebento que eu trazia como um troféu. E lançou a profecia que se realizaria pela vida afora: "Você nunca será alguém, meu filho!".
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) 08/07/2004