A Aliança das Civilizações das Nações Unidas realiza a sua primeira reunião no Brasil, no empenho de se votar uma "cultura da paz" após a catástrofe das torres, o avanço do terrorismo internacional e da desconfiança entre as culturas. Os últimos dias atestaram como, no cerne desta grande ruptura de nosso tempo, encontram-se o jogo de um irracional coletivo, as mobilizações populares, por sobre o esforço de coexistências com a diversidade, tal como pede o aprendizado democrático, para a volta à dita "cultura da paz".
Vivemos o mundo das dominações, chegados à hegemonia que expropriou na cultura islâmica o seu próprio inconsciente coletivo frente à colonização ocidental. Foi levada ao protesto continuado, num despertar tardio de sua afirmação identitária extremada, num terrorismo para além da mera ação de gangues fanáticas como a do Al-Qaeda. É o irracional de confronto que leva agora, ainda, ao inacreditável na ameaça de prisão de quinze anos, e cinqüenta e sete chibatadas, à professora britânica que em Darfur deixou os alunos chamarem de Maomé os seus ursinhos de pelúcia.
O perdão concedido pelo presidente Bachir, do Sudão, a pedido de deputados ingleses corâmicos, transforma em pseudo magnanimidade o que se exigiria do respeito elementar aos Direitos Humanos, como base de uma convivência entre os povos.
As mobilizações do nosso próprio Hemisfério podem se somar, na boa veia, à genuína resistência democrática, diante da equívoca revolução bolivariana da Venezuela. Estancou-se um outro irracional, proposto pela inacreditável reeleição indefinida do presidente. Os milímetros da diferença entre o "sim" e o "não" do plebiscito marcam, de imediato, uma freada à catástrofe, e a criação de um autoritarismo sem volta nascido da onda populista milionária de Chávez. O país, salvo, por menos de 1% de votos, agora, do risco de um chefe de Estado perpétuo, põe em causa, ao mesmo tempo, o que seja a mobilização como virtude cívica, que teima em ir às urnas sem se entregar à inércia de uma fatalidade eleitoral. O sucesso veio de quem acreditou no "não", contra todos os vaticínios e no respiro da sociedade civil, suas diferenças e expectativas, frente ao fechamento do aparelho chavista no desrespeito, de vez, do que sejam maiorias para uma modificação constitucional.
Ao mesmo tempo, o instrumento do plebiscito, para desmonte, de vez, da democracia representativa, saiu-se ao inverso do pretendido, tanto o povo, na rua, superou o governo, dentro das suas próprias regras do confronto. Mas até onde Chávez dá-se conta do que é o perigo dessa derrota, ainda que por infinitésimos? As democracias emergentes não regularam o recurso ao plebiscito, visto como um golpe definitivo, mas único, na democracia representativa. Não há ritos de repetição, e se estabelece no que decidiu uma opção sem volta para o regime. Vamos à nova Constituinte para revogar o "não"?
Que revolução bolivariana, presa na própria armadilha, poderá tornar o dito pelo não dito, chegando ao grotesco, na manipulação populista fracassada, no último 2 de dezembro? Ao contrário do que afirmou Chávez, um regime de liberdades se salva, de vez, por um sucesso de Pirro. A irracionalidade aposta numa mobilização, que pode errar os cálculos, ou dar, de barato, a passagem, à megalomania, do autêntico caminho ao destino nacional.
O Globo (RJ) 10/12/2007