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O papel da voz

 

Uma voz é como um instrumento musical, sua qualidade depende de quem a toca. Até a voz humana é tocada por alguém.

No caso de vozes a que estamos acostumados porque já as ouvimos há algum tempo, muitas vezes a própria garganta que a emite não está muito certa de como deve ser a emissão. O excesso de facilidades em diferentes emissões é confundido com virtude e qualidade; mas é preciso estabelecer onde ela (a voz) será mais original e mais adequada à canção que ela pretende cantar. A voz deve estar sempre a serviço do que canta.

Não é muito raro que a voz nos agrade há tanto tempo e agora nos afaste do que quer nos comunicar com seu canto. Às vezes é o próprio tempo que destrói a qualidade de bemóis e sustenidos, às vezes é apenas o desinteresse pelo canto, o cansaço do pranto, o fim de qualquer notável encanto. A voz se perde por esses sinais e não se encontra mais.

Não era o caso de Elis Regina quando, há quase 50 anos, aceitou fazer um álbum, uma antologia da bossa nova com Tom Jobim, o grande Tom Jobim, em Los Angeles, nos EUA.

Ele não teve que mudar a voz de Elis, não precisou torná-la uma outra intérprete, não mexeu em nada do que sempre nos encantou em seu jeito de nos comunicar suas tristezas, frustrações, dores de tantos amores perdidos, suas desgraças de ser humano que ama e nem sempre é feliz no amor. Ela já sabia nos comunicar tudo isso, sempre nos comunicou todos os sentimentos que era capaz de sentir sem sair do tom, como uma voz que, não é que desabafe, mas apenas comunica sua dor.

E daí saiu o extraordinário álbum “Elis & Tom”, um documento de nosso tempo sem o qual seria quase impossível viver (pelo menos no Brasil). Como saiu agora, tantos anos depois, um filme acomodado a nosso tempo, “Elis & Tom”, o primeiro feito por Roberto de Oliveira, ilustrando as gravações, nos ensinando a viver como ouvimos suas faixas musicais, sem escândalo ou estardalhaço, com a certeza de que não precisamos chorar porque o pranto não é mais do que mais uma forma de dizermos o que já sabemos o que é, mesmo antes de ouvirmos sua descrição.

Vi mais este filme brasileiro outro dia, numa sessão privada em que havia talvez mais de 300 espectadores (o que só confirma nossa brasileira ausência de regras, graças a Deus!), como um presente de um passado tão recente. Vi-me ali, desde as primeiras imagens do filme, circulando entre as dores de Elis Regina e os ensinamentos de Tom Jobim, um gênio, não só das composições e dos arranjos, mas também das palavras à cantora e aos músicos que seguiam as gravações como quem segue uma santa missa da qual não se pode perder nenhuma oração.

Me ocorreu que, no fim do século XVIII, a Revolução Francesa criou a base dos movimentos liberais e democráticos que segue valendo até hoje, a partir de três fundamentos: liberdade, igualdade e fraternidade. O desalmado capitalismo escolheu a liberdade como seu princípio básico de sobrevivência. A igualdade foi a escolha do socialismo burocrático, que dividiu o mundo, um racha ao que parece sem solução.

Cabe ao Brasil resgatar a fraternidade como sua contribuição ao progresso da Humanidade. É este o nosso papel para o qual temos nos preparado, sobretudo na invenção de nossa mais moderna cultura. É este o nosso papel na civilização humana, no futuro do homem. Seus sinais estão em nossos filmes, como em “Elis & Tom”. E sempre nos surpreende.

 

O Globo, 20/08/2023