"O Grito do Ipiranga" foi registrado, ainda que em retrospecto, pelo artista paraibano Pedro Américo
Quando a independência foi proclamada, às margens plácidas do Ipiranga, não havia nenhum jornalista presente, nenhum fotógrafo, nenhuma equipe de tevê (Aqui estamos, acompanhando a comitiva de Dom Pedro I, que neste momento deteve-se: é que um mensageiro acaba de chegar, com uma carta. Dom Pedro a lê, testa franzida. Está preocupado; não, está furioso. Alguma coisa vai acontecer.).
Mas a cena, de qualquer modo, foi registrada, ainda que em retrospecto. Encarregou-se disso o artista paraibano Pedro Américo, que tinha estudado em Paris e era um respeitado representante da arte acadêmica no Brasil. Em 1888, e a pedido do governo imperial (um dos últimos pedidos, aliás) pintou uma gigantesca tela, de quase 8 metros de largura por 4 metros de altura, que atualmente está no salão nobre do Museu Paulista da USP. Originalmente chamava-se Independência ou Morte, mas ficou conhecida como O Grito do Ipiranga. Pintura acadêmica, claro, grandiloquente mas com pretensões realistas. Além de Dom Pedro, os personagens principais são os garbosos cavaleiros da comitiva; formam um semicírculo à direita e à frente do grupo principal. À esquerda (não esquerda política, esquerda espacial), Pedro Américo não quis colocar cavaleiros; talvez achasse que era poder demais para uma obra só, mesmo grande. Mas algo, ou alguém tinha de aparecer ali, até por questões de simetria, de composição visual. O artista então optou por uma solução que, se não chega a ser inusitada, pelo menos chama a atenção. O que temos ali, à esquerda, é uma carreta com toras, puxada por bois e guiada por um homem do campo que olha a comitiva com óbvia curiosidade e até espanto.
Pedro Américo preparou-se longamente para pintar o quadro. Ia frequentemente à região do Ipiranga, em São Paulo, e ficava estudando a luz, a topografia. Mesmo assim foi acusado de distorcer os acontecimentos. Diz-se que, na verdade, não eram cavalos que o grupo montava, mas sim mulas, mais humildes, porém mais adequadas para uma marcha forçada, difícil, e longa: o cortejo, vindo de Santos, subira penosamente a Serra do Mar. E provavelmente estariam usando roupas mais simples, não os luxuosos uniformes que ostentam; e certamente estariam cobertos de poeira, porque estradas, naquela época (melhor dizendo, trilhas), eram de terra batida. Por último, historiadores sustentam que Dom Pedro não estaria em condições de praticar gestos heroicos; naqueles dias, acometera-o uma diarreia, doença típica de países pobres e com problemas de saneamento.
Mas o carreteiro, este sim, respira autenticidade, perplexa autenticidade. Obviamente não está entendendo o que se passa. É um espectador passivo, ainda que curioso e interessado. Neste sentido, corresponde ao popular, que Verissimo imortalizou numa crônica notável. O popular, diz-nos o Luis Fernando, é aquele cara que está sempre presente em momentos de tensão, em momentos explosivos; mas limita-se a observar o que se passa. Como o povo brasileiro, aliás. À exceção de revoltas populares, de episódios de quebra-quebra, os brasileiros eram espectadores. Foi assim no 7 de setembro de 1822; e foi assim no 15 de novembro de 1889. Só depois é que viriam a se dar conta das mudanças ocorridas. Mas o Brasil mudou muito. As pessoas estão informadas, têm opinião, e sobretudo votam. O voto, não o brado heróico dos mandatários, é que condiciona os rumos do país. Certo, eleições podem resultar em equívocos, mas isso faz parte do processo: em democracia a gente aprende pelo método da tentativa e erro. O carreteiro de Pedro Américo certamente concordaria.
Zero Hora (RS), 5/9/2010