O AVANÇO da campanha eleitoral americana só salienta a absoluta desimportância da América Latina no horizonte político dos candidatos. Nenhuma menção ao continente, mesmo quando pode depender dos "chicanos" -e são 30 milhões nos Estados Unidos- o passo definitivo para a vitória democrata.
O republicano John McCain chegou à gafe inaudita de considerar o primeiro-ministro José Luiz Zapatero um político latino-americano. E o democrata Barack Obama, ao falar da abolição dos muros, a partir do de Berlim, se esqueceu, por inteiro, da cortina de concreto que acompanha o rio Grande e entra pelo Pacífico, a barrar a entrada dos imigrantes mexicanos na "Terra Prometida".
Há que se pensar na grande reviravolta da política externa pós-vitória do democrata, que abate a visão das hegemonias, vistas pelo Salão Oval, em Washington, diante do mundo multipolar que mal começa.
Aí estão os Brics, a começar, alfabeticamente, pelo Brasil, e a Rússia, Índia, China, e África do Sul soma-se a força emergente desse México, na avalanche de 80 milhões de habitantes do seu mercado interno.
A Unasul (União de Nações Sul-Americanas), ora proposta pelo Brasil, talvez seja, ainda, o último esforço para pensar globalmente esta América Latina, num preito ainda ao passado, diante desta convivência crescentemente desigual, em que a região não pesará mais como bloco, mas com suas alianças intercontinentais, em que hoje já se lança o Brasil de Lula.
Um exame crítico dessa nova perspectiva despontou na recentíssima Conferência de Mérida (México), da Academia da Latinidade, que se deu conta, ao mesmo tempo, do risco das novas fraturas nacionais no continente a partir da República de Santa Cruz, na Bolívia, ou de Guayaquil, no Equador.
Seriam o clímax do desequilíbrio final de uma velha estrutura de dependência econômica, do extrativismo bananeiro ou de minérios, diante de governos finalmente nascidos das eleições democráticas em La Paz e Quito.
Morales e Correa romperam, de vez, com os ciclos das perpétuas elites dominantes na sua expressão nacional e, por outro lado, não querem se confinar, na sua afirmação coletiva, ao fundamentalismo indígena do país aymará ou quetchua.
Pretendem, sim, e por uma vez, que o regime de distribuição efetiva de rendas cubra o país todo, em vez de deixar os proventos fiscais dos extratos latifundiários em suas próprias Províncias, exasperando a concentração da riqueza proverbial, de par com a desestabilização permanente de sua fragilidade política.
Nem Morales nem Correa pregam a nação étnica, mas, de fato, a nação cívica de países, finalmente, para todos. Mas, nesse empenho, vivem agora a contradição no próprio processo democrático, que deu legitimidade inicial a essas Presidências e, agora, entra nos percalços das distorções, das reeleições perpétuas, das reformas constitucionais por quórum irrisório e do abate da convivência com as suas oposições.
É nesse quadro que, para um futuro governo Obama, avultaria um descrédito latino-americano, tanto essas etapas viessem no rumo, já grotesco, do exemplo de Chávez e desse simulacro da revolução bolivariana, a propor intervenção militar na Bolívia rechaçada pelas próprias Forças Armadas ou a celebrar as Farc e suas guerrilhas patéticas e enveredar para a violação dos direitos humanos, denunciadas ao Tribunal de Haia.
Nesse contraste ressalta, mais que pelo dinamismo econômico, o Brasil de agora, no absoluto respeito ao padrão democrático, na renúncia aos terceiros mandatos e na fidelidade às regras de jogo institucional. Nessa folha corrida democrática, ganha inclusive da maioria dos demais Brics.
O que começou no continente e pela liderança de Lula com a Unasul não volta à OEA (Organização dos Estados Americanos) do velho cabresto periférico. Mas a América de Obama não pode começar sem conhecer -olhos nos olhos- o Brasil de Lula.
Folha de S. Paulo (SP) 23/10/2008