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O outro Joyce

 

Dei-me, em certa noite africana, ao exercício de selecionar os romancistas da primeira metade do século passado que de perto me tocassem mais. De qualquer ângulo que examinasse o tema, o nome de Joyce Cary me aparecia logo. Ninguém executou e compreendeu a função de ficcionista com mais alegria e precisão do que este inglês de estilo direto e claro.


Mesmo em suas primeiras histórias - as de fundo africano - "Mister Johnson", "The african witch", "Aissa saved" (esta, lançada em 1932), já se revelava o narrador por excelência, o romancista que não se entregava ao óbvio nem se comprazia com o lugar-comum. O Gulley de "The horse's mouth" é dos personagens mais fortes de nosso tempo, e eu colocaria "A fearful Joy" entre os dez melhores romances de qualquer época.


Por volta de 1955 foi Joyce Cary informado pelo seu médico de que morreria dentro dos próximos dois anos. Enquanto a doença caminhava, dedicou-se Cary à tarefa de completar um romance que há muito lhe agitava os silêncios e de preparar material para um livro sobre a arte do romance. "Art and reality", que junta ensaios, estudos e anotações do autor sobre o que ele chamou de "os caminhos do processo criador" na ficção, saiu em 1958, menos de um ano depois da morte de Cary, ocorrida no último dia de março de 1957.


Editada na World Perspective Series, reapareceu em 1961, com rótulo de Anchor Books, de Nova York. Estudiosos do romance contemporâneo, têm obrigação de conhecer os curtos capítulos desse manual. Principalmente pelo que diz o romancista sobre a força, a linguagem e os limites do símbolo na obra literária em geral e na ficção em particular. Joyce Cary detém-se, em certa parte do livro, na enorme diferença existente entre, por exemplo, estas duas frases: "Deixou a sala" e "Saiu para a rua", diante das quais um romancista pode hesitar.


Em capítulos sobre o símbolo, lembra que a diferença entre arte e vida leva aquela ao campo do "As II" e, sendo um "como se", uma aparência, uma criação, pode provocar tentações. E mencionei este trecho de "Art and reality": "Mas o 'como se' é uma tentação. Veja-se Hardy em 'Tess of the d'Urbervilles', em que Tess, tendo matado seu sedutor, o homem que destruiu sua vida, está fugindo da polícia.


Ela se perde na névoa, na planície de Salisburry, e, finalmente, cansada, enquanto a polícia fecha o cerco, Tess deita-se no único lugar seco que encontra, uma pedra lisa. Quando a névoa se levanta, descobre-se que essa pedra é a do altar, em Stonehenge, e Hardy fala dela como da pedra do sacrifício. A mulher deixa, então, de ser a Tess envolvida na sua tragédia pessoal. Transforma-se num objeto, num elemento inanimado de palco".


Ao saber que a morte estava perto, desejou Cary terminar uma história em que se juntavam duas forças do mundo de hoje: um jornalista e um líder religioso. Não conseguiu terminar o livro, mas este, publicado, tem, apesar de ligeiro tom de inacabamento, enorme vigor. Chama-se "The captive and the free".


Walter Preedy é o chefe de seita, uma espécie de Bispo Macedo britânico, defensor da tese de que Deus cura todos os males e de que, portanto, a Medicina deve ser proibida. Ao lado de Preedy, coloca Joyce Cary um pastor que a ele se opõe, uma jovem por ele seduzida, um jornalista que resolve ligar seu nome a uma campanha, e a filha da proprietária do jornal.


Nesse mundo, em que a imprensa e a religião se combatem e se unem, joga Cary uma porção de violência, com massas de crentes reagindo fisicamente a idéias religiosas e a artigos jornalísticos. Foi pena que Joyce Cary não tenha podido dar, a "The captive and the free", aquele sereno teor de perfeição que é tão evidente em "A fearful joy". "The captive and the free" saiu obra um tanto nervoso, mais ou menos no estilo dos primeiros livros de Cary, de que a história do negro nigeriano chamado "Mister Johnson" é bom exemplo.


Mesmo assim, "The captive and the free" é romance que releio de vez em quando. Nele, tantas e tão veementes feituras da ficção se mostram com tamanha evidência, que não há como deixar de separá-lo das demais narrativas de nossa era como significativa de um momento do homem. E há, nos meandros da última história de Cary, uma presença que acompanha tudo o que existe, mas cuja proximidade e consciência dotaram esse romance de uma extrema pungência: a do avanço do fim.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 09/10/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 09/10/2002