Curioso: a mídia é compactamente progressista. O demônio de plantão é o conservador Joseph Ratzinger. Impressionante como o estão satanizando, tornando-o a besta negra do atual conclave e, até certo ponto, substituindo Bush no pódio do homem atualmente mais odiado pela mídia nacional e internacional.
Estou longe de morrer de amores pelo cardeal alemão, mas não deixa de ser irritante a satanização de Ratzinger. Atribuíram a ele a imposição do silêncio aos cardeais, que data de 1139, por ocasião do segundo Concílio de Latrão, que criou a exigência do silêncio.
Pior mesmo foi o que li e ouvi na segunda-feira, quando os cardeais se trancaram no conclave. Textualmente, foi noticiado que cardeal tido como linha-duríssima botou todos os estranhos para fora da capela Sistina, aos berros, gritando: "Extra omnes". Tradução literal: "Todos fora!". Tradução real: "Rua!".
Este último ritual é mais recente, foi adotado pelo sexto concílio na mesma basílica, se não me engano em 1517.
O grande furo da mídia nada tem a ver com o "furo", que, em jargão adotado nos jornais, é a notícia dada em primeira mão. O furo a que me refiro é a perspectiva mesquinha que ela adota para informar, analisar e opinar sobre o que acontece no mundo contemporâneo. A impressão que me dá é pitoresca. Comentam-se os fatos como se o mundo tivesse começado com a Elis Regina, com a tentativa de suicídio do gato do João Gilberto e com o cinema novo.
Nada houve antes dos três eventos. Só existiam o Grande Vácuo, o Nada. Nem Guerras Púnicas, nem assassinato de César, nem a Carta Magna, nem a Renascença, nem a Reforma, nem mesmo a vacina obrigatória que o Nelson Rodrigues sempre lembrava como o fato mais remoto e indecifrável da história humana. (PS - Esta crônica foi escrita antes da eleição de Bento 16. Pensei em substituí-la, mas vai assim mesmo.)
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/04/2005