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O novo porta-voz

 

0 pontificado de Bento XVI marca-se, nestes meses, por um momento exemplar no contraste entre o ganho de seu desempenho internacional e as tensões internas, despertadas pela pressão de grupos austríacos, dispostos a uma confrontação como não tínhamos notícia desde o bispo Leclerc, trazido, exatamente, ao rebanho, de novo, pelo atual pontífice. E é dentro de um inesperado convite à obediência radical que Bento XVI contempla a realidade desta possível ruptura, diante de uma reflexão amadurecida, frente aos desafios do celibato e da aproximação dos divorciados aos sacramentos. Mas há poucos dias um Papa pôde sentir o peso do catolicismo indo às áreas da América Latina, que entraram, formalmente, no século passado, em choque com a sua tradição católica. Não há que voltar à violência do anticlericalismo e da instalação, há um século, no México, da república de Carranza e Obregón para deparar, hoje, a força do retorno à fé, que faz do país azteca nosso concorrente à dominância do catolicismo no continente.

0 lance fundador vem de Bento XVI, em Cuba, e na consagração ampla da liberdade de culto e da ampla frequentação das igrejas do país. Desapareceu a fiscalização do sistema sobre os frequentadores do culto e dos sacramentos. Avulta, na melhor acepção do que seja o magistério, a tarefa do cardeal Jaime Ortega, de Havana, a avançar, já, sobre as primeiras concessões feitas à Igreja, na visita anterior de João Paulo II. E essa força da coragem e da determinação que deu, agora, todo um caráter prospectivo à presença de Ratzinger. "Não há que olhar para o passado ou voltarmos às condenações de regimes ou modelos" — frase dita, ainda neste tom, durante o voo de chegada a Havana. E não se trataria, inclusive, de uma fácil retórica do perdão, mas, sim, da força nova do diálogo, criando-se um contencioso dos direitos humanos e de sua defesa na voz da igreja, "perita" em humanidade.
 
Determinadamente, Bento XVI esquivou-se de formalizar as vozes de protesto das "Damas de Blanco", em bem dessa aposta na difícil construção de um consenso de futuro. E a vitória do cardeal de Havana em obter a torna do feriado da Sexta-Feira Santa quer ser mais do que uma homenagem nostálgica às tradições, no respeito às diferenças de culto, num sistema sufocado pela militância ideológica. Diante das repressões de há meio século, não foi o racionalismo agnóstico que cresceu com a revolução, mas a "Santeria", que misturou religiões crioulas numa espécie de resistência à imposição dogmática no inconsciente coletivo cubano. Impacto inesperado de Bento XVI foi o dos desmontes do reacionarismo da fé dos cubanos de Miami. É a visão prospectiva, e nada nostálgica, a que emerge de Havana, na palavra papal, e, sobretudo, esta liderança do cardeal Jaime Ortega, como voz adiante da Igreja da América Latina.

O Globo, 27/4/2012