Leitor compulsivo até os 40 anos, lendo tudo o que podia e não podia, comecei a esmorecer quando meti na cabeça que eu próprio podia escrever livros. Nos últimos tempos, prefiro reler - daí que não estou atualizado com a literatura que agora se fabrica. Mesmo assim, tive um momento de verdade ao ler o último romance de Moacyr Scliar, 'Eu vos abraço, milhões'.
Explicando o título: é um verso de Schiller, extraído de sua 'Ode à Alegria', que inspirou Beethoven a compor a 'Nona Sinfonia'. Título que poderia ser alternativo para o livro de Scliar seria 'Que fazer?', citado no texto diversas vezes, sempre no original (Choto delat?). Na passagem dos anos 20 para os 30, temos a história de Valdo, um menino gaúcho influenciado por Geninho, rapaz da mesma região, que o introduz na luta de classes e no comunismo romântico daquele tempo. Geninho morre, mas pede a Valdo que continue na luta, que vá procurar Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB e que mora no Rio de Janeiro.
Não se trata de um romance de formação: Scliar nasceu bem depois desse tempo. Mas seu livro é a aventura de todos os que foram chamados para a luta social, independentemente até dos partidos afins. Valdo vem para o Rio num trem de carga, procura desesperadamente por Astrojildo como os cavaleiros antigos procuravam o Santo Graal. Moço ainda, Astrojildo beijara as mãos de Machado de Assis no leito de morte. Mas está em Moscou. Quando retorna, cai em desgraça dentro do partido que fundara.
Valdo queima um exemplar de 'Dom Casmurro', um romance burguês para burgueses. Desorientado, aceita trabalhar na construção do Cristo Redentor. É encarregado de fazer explodir a monumental estátua. Não conto o resto. Este resto marcará para sempre a literatura brasileira.
Jornal do Commercio (RJ), 9/11/2010