Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O mundo de Kafka

O mundo de Kafka

 

Estamos, em várias partes do mundo, lembrando Franz Kafka neste junho, que marca os 80 anos de sua morte. Era 1924. Atacado pela tuberculose, deixara Praga e fora internado numa clínica particular nos arredores de Viena. Por ocasião de um congresso literário na Áustria, fui visitar o local em que passara suas últimas semanas de vida.


O prédio em que funcionava a clínica, de quatro andares, é hoje um pequeno museu que mostra fotos e documentos do escritor. O quarto em que morava e em que morreu, tinha, e tem, uma pequena varanda que dá para um jardim. Sentado numa poltrona, passava Kafka a maior parte do dia, lendo e em geral olhando para as folhas e as flores (era época de flores).


Nessa minha visita, depois de atravessar o quarto que fora dele, quedei-me quieto na varanda, olhando e pensando, olhando as plantas do jardim, herdeiro do de então, e pensando no que representou a obra daquele escritor, que nos deu o entendimento da sombra que nos envolve e nos explica.


Kafka morria mais ou menos jovem para o muito que ainda poderia escrever. Tinha 40 anos e, já na clínica, terminou sua estranha narrativa chamada "O artista da fome".


Pelo seu diário, ficamos conhecendo a tragédia pessoal do autor de "O processo". O pai de Kafka era um homem de negócios, que reprovava, a cada instante a vida de escritor que o filho levava. Aquela tendência para introspecção era incompreensível para o homem positivo, de idéias convencionais, que foi o pai do escritor.


Kafka revela, no diário, amar e respeitar, mas ao mesmo tempo, temer e odiar, aquele pai que nunca aceitara o seu modo de vida. Afirma: "A simples visão de uma cama de casal, com os lençóis usados, as camisolas cuidadosamente dobradas, exaspera-me a ponto da náusea".


Franz Kafka ficou noivo, mas nunca chegou ao casamento. Seu caso tem pontos de relação com o de Kierkeggard, a quem muito admirava. Este também amava uma mulher só não se tendo casado porque julgava que ela seria infeliz em sua companhia. As angústias do pensamento de Kierkegaard e Kafka não lhe deixavam tempo para pensar num bem-estar pessoal, numa tranqüilidade normal de vida. É com ironia que Kafka afirma que sua noiva "desejava tudo o que é comum: uma casa confortável, uma parte nos lucros dos negócios da família, boa comida, aquecimento central e hora certa de dormir: 11 horas da noite".


Conheceu, então, uma judia polonesa, por quem se apaixonou. Foi o momento mais feliz de todo o seu tempo. Quis casar-se, manifestou-se "arrependido, em busca de conversão". Nada mais podia salvá-lo. Casamento, mulher, as alegrias comuns da vida, nada poderia saciar a sede de tranqüilidade do homem que distorcia as imagens, transformando-as em objetos possuídos de angústia.


Quando escreveu "Metamorfose", parecia estar pensando em si mesmo, sofrendo sua própria angústia. Era o incompreendido, o homem que se tornou estranho ao seu pai, à sua mãe, a todos os membros da família - o homem que acordou pela manhã e descobriu que se metamorfoseara num inseto. O que dá, ao diário de Kafka, um toque positivo é a consciência que tem de que suas obras poderão salvá-lo.


Diz: "Escrever é a minha luta pela auto-preservação". Escrevendo, descobre, em tom de fábula, as contingências dolorosas que cercam o homem. Surpreende, em momentos de nitidez, o segredo das coisas, o mistério de tudo o que acontece sem remissão, o mistério da fraqueza do ser humano que não pode erguer a torre da sua vontade contra o caminhar do tempo.


Em algumas páginas de seu diário, parece reagir. Diz: "Pensas que estás no fim de tuas possibilidades e eis que novos impulsos te dominam. A vida é justamente isto".


Contudo, quando usa um tom que poderia ser chamado de otimista, dirige-se ao leitor, usa o "tu". No momento em que fala de si mesmo, a tônica é depressiva: "Nunca atingirei a idade do homem. De criança passarei a velho".


Kafka compreendeu Kierkegaard como o homem dotado de uma ausência de participação, de uma necessidade do descobrir, em outro mundo, uma justificativa super-racional para este. Há, nas circunstâncias que cercam o Karl de América ou o K. de "O processo", uma espécie de conspiração de todas as forças do mundo para arrasar o indivíduo.


Este era o sentimento de Kafka dentro da vida, como tinha sido o de Kierkegaard. Até nos fatos decisivos de uma existência (o casamento). A atitude dos dois foi idêntica. Se Kierkegaard se julgava angustiado demais para dar uma vida alegre à mulher que amava, Kafka assumia a mesma hesitação hamietiana e dizia, a propósito de seu rompimento com a noiva: "O que eu sofrerei, o que ela sofrerá - nada disto se pode comparar com o que sofreríamos em comum".


A memória de Franz Kafka recebeu traços novos num romance polonês, de Ana Bolecka, chamado "Querido Franz", agora traduzido no Brasil. Tem o livro o seguinte subtítulo: "Um romance epistolar sobre Kafka".


Através de cartas e documentos, de Franz para Milena, para Felicia e para Greta, de amigos e pessoas ligadas a Kafka, estende-se o texto ao período de 1911 até 1947, já depois da II Guerra Mundial, quando membros da família de Kafka e muitos de seus amigos haviam sofrido nas mãos da loucura nazista. No meio do mistério que sempre envolveu Kafka, ergue-se agora este livro que nos abre um caminho no entendimento de um dos escritores mais tragicamente lúcidos que representou e ajudou a formar o nosso tempo.


"Querido Franz" é um lançamento da Record. Tradução de Tomsz Barcinski, foto da capa de Pedro Lobo, orelha de Jorge Bastos.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 08/06/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ), 08/06/2004