Na semana passada, segundo queixas de alguns, escrevi com melancolia, ou mesmo amargor, sobre a velhice. Tudo pela busca do melhor para o freguês: fiz o sacrifício de reler o que escrevi, mas não achei nem melancolia nem amargor. Deve ser a idade. E, de qualquer forma, tenho visto manchetes animadoras, como esta que aqui repousa em minha mesa, embora já antiga para jornal. Informa, com letras às quais só faltam umas estrelinhas cintilantes para lhes realçar o brilho orgulhoso, que os governantes (espero estar usando um termo aceitável por eles; se não estiver, por favor mandem me dizer qual devo empregar, que mudo instantaneamente) do Complexo do Alemão, território carioca de jurisdição controvertida, permitiram a visita do governador Pezão e autorizaram a realização de obras públicas no local. Enquanto meus olhos certamente também brilhavam, li ainda que fizeram a gentileza de remover uma das barreiras destinadas a impedir o tráfego de veículos com cujos passageiros os ditos governantes mantenham divergências de natureza comercial.
Foi um belo exercício de cidadania. Sentei-me e pensei em como é bom morar numa cidade cujos, digamos, governantes setoriais, tenham essa visão e essa grandeza de espírito. E, assim, contanto que respeitadas as exigências cabíveis, o que é muito natural, posso gabar-me também de viver numa cidade onde o governador pode ou poderá, se continuar a trabalhar certo nesse sentido, ir a qualquer lugar público que queira. Vou escrever a meus amigos estrangeiros, ninguém vai acreditar, é um passo muito grande, mesmo para um Pezão - desculpem.
A alegria, contudo, empanou-se-me cá um pouco, ao ler e ouvir as estatísticas sobre a dengue. Vários médicos amigos meus me asseguraram que a epidemia já é clara há meses, mas as autoridades de todos os níveis negam. Não sei se já estabeleceram se o mosquito da dengue é federal, estadual ou municipal, mas, conhecendo os nossos políticos, não duvido nada que um deles, ou vários deles, venham nos dizer e até escrevam artigos nos jornais, que se trata de uma estratégia de combate ao diabólico mosquito. Sem se declarar a que esfera da saúde pública o mosquito está vinculado e muito menos se ele está causando uma epidemia, provoca-se nele grave crise de identidade e auto-estima, que poderá a vir debelá-lo.
Tudo, não obstante, tem um lado positivo, especialmente num país predestinado como o Brasil. É bem verdade que deveremos pagar um alto preço por isso, mas não se chega ao topo sem muito sacrifício. Em breve seremos um prestigioso mercado, quiçá o maior, consumidor mundial de repelentes de insetos e engenhocas antimosquito. E produtor também, com um mercado interno cuja tendência é só crescer. Não ficaremos nos repelentes sem graça que agora circulam por aí, vamos ser referência mundial. O negócio é ver as coisas com originalidade, com olhos, diria mesmo, brasileiros, que são, como todos sabem, os que melhor enxergam em todo o orbe. Não dá para acabar com a epidemia de dengue? Solução fácil: continua-se a negar sua existência - diante do que já engolimos de mentiras, essa é mole. Transformar o limão numa limonada? Mais moleza ainda. Produzir repelentes de grife e repelentes populares, criar o crédito-dengue para as camadas menos favorecidas que só usarão 'Bugoff', a marca mais vendida. Comemorar o Repe-Rio todo ano, com as top models se borrifando de repelentes sofisticadíssimos, um show para milhões em Copacabana e uma entrevista no jornal da cinco da manhã com um defensor do direito à vida do mosquito da dengue. E isso só tirado assim da cabeça de repente - imaginem o que um bom marqueteiro não faria.
No setor propriamente científico, também poderemos não só iniciar como negociar acordos de pesquisa com entidades do mundo todo. Sei que algumas universidades alemãs e talvez francesas mandarão filósofos e cientistas sociais estudar como uma epidemia que deixa gente deitada em calçadas de hospitais não é epidemia. Mas não é esse o filé. O filé vai desde pesquisas sobre a evolução das espécies, assim trazendo para cá multidões de darwinistas para discutir com criacionistas, mais também à área farmacológica.
Já deu nos jornais, não leu quem não quis. O onipresente aedes aegypti tem sido estudado, pois alguém do povaréu todo que devia estar cuidando da doença deve trabalhar, tenho certeza. E eis que, com bem mais velocidade do que se esperava, começam a surgir variantes entre os aedes cariocas e seus ancestrais. Por exemplo, diz aqui que, se antes o aedes era todo exigente em relação à água em que punha seus ovos, agora qualquer água serve. Já encontraram ovos e larvas em poças imundas e até enlameadas. E conto mais, porque já senti que vocês não leram mesmo. Antigamente, o aedes só picava durante o dia, às claras. Hoje, não. Hoje, como qualquer pernilongo carioca, ele (cartas sobre quem pica é a fêmea etc. etc. para o editor, por misericórdia) já descobriu que o pessoal dá mais chance quando vai dormir e aí se adaptou. Não demora, um deputado vai apresentar projeto de lei declarando a existência do aedes carioca, para cujo nome científico já tenho algumas sugestões aqui, que deixo para depois.
Mas não deixo para depois o comentário com que um companheiro de boteco, ao saber dessas novidades, encerrou um pequeno discurso sobre a realidade nacional.
- O Brasil é mesmo um país extraordinário. Esse mosquito veio parar aqui, num instante entrou na política, já se fez na vida, se acostumou na lama ligeirinho e aprendeu logo a atuar no escuro. Aegypti nada, rapaz, Brasyli.
O Globo (RJ) 23/3/2008