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O mito da imparcialidade

 

A questão da imparcialidade na justiça brasileira, discutida desde que o ex-juiz Sérgio Moro foi considerado “suspeito” no processo que condenou o ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá, ganha novos ares com um trabalho da jurista Bárbara  Gomes Lupetti Baptista em número recente da revista Insight Inteligência, baseado em uma pesquisa empírica que realizou no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro há dez anos, que ela comparou com a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Ela não se refere ao caso recente de perseguição a Moro por parte do Tribunal de Constas da União (TCU), mas demonstra que a proximidade do Ministério Público com a magistratura é corriqueira no sistema judiciário brasileiro. Nesse caso atual, essa relação está explicitada na relação do Subprocurador do Ministério Público de Contas Lucas Furtado com o ministro do TCU Bruno Dantas.

Também o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que comandou o julgamento da Segunda Turma que considerou Moro “suspeito”, não está citado, mas é exemplo de juiz que julga segundo critérios próprios de Justiça, colocando seus pontos de vista acima dos regulamentos, como acusa Moro de ter feito. A mudança de voto da ministra Carmem Lucia, determinante para a condenação de Moro, também é referida no trabalho como exemplo da fluidez do conceito de “imparcialidade”.

A jurista ressalta que a maior parte dos casos da Operação Lava Jato no STF foi decidida por maioria, sem consenso, e mais de dois anos após os fatos, demonstrando que “condená-lo à pecha de “parcial”, também explicita a lógica pendular e seletiva desse sistema”. Segundo a jurista, “o contraste dos dados (antigos) e os fatos (novos) permitiu pensar não apenas sobre a fluidez da categoria “imparcialidade”, como também nos paradoxos de nossa cultura jurídica que, entre dogmas e práticas, ilustram que os interlocutores, ao mesmo tempo em que expressam a sua descrença na imparcialidade, (…) por outro lado também reverberam a necessidade de sustenta-la enquanto crença”.

A jurista conversou na pesquisa, para sua tese de doutoramento, com cerca de 80 magistrados, e diz que ouviu diversas vezes frases como “você sabe que imparcialidade é uma coisa que não existe, né ?”, assim como a explicação de que “as pessoas têm que acreditar que ali tem um juiz imparcial”. Essa dicotomia mostra que “mais que existir de fato, a imparcialidade se constitui como crença. E guarda uma ambiguidade: de um lado, manter vivo o seu discurso serve para ocultar sua eventual inexistência, e de outro, produz efeitos para os destinatários do sistema de Justiça”. Se o Judiciário assume que o juiz não consegue ser imparcial, o sistema vai falir. Acaba o sistema.

A jurista Bárbara Gomes Lupetti Baptista diz em diversos momentos que não pretende minimizar a revelação da intimidade e cumplicidade da relação entre o Ministério Público e a magistratura no caso dos processos conduzidos pelo ex-juiz Sérgio Moro, e sua consequência, como a prisão do ex-presidente Lula às vésperas da eleição, mas não o condena nem absolve. Apenas confirma que sua pesquisa empírica demonstra que “ explicitar (ou tratar) como absurda, incomum, inédita ou extraordinária a conduta do juiz que conduziu o processo da Operação Lava Jato é, de um lado, desconsiderar a realidade processual brasileira, e de outro manter viva a crença em um conceito de imparcialidade sem correspondência com a realidade”.

Uma frase que diz ter ouvido muito foi “a minha verdade é a minha justiça”. Outra: “Você não pode julgar com o coração. A sua referência é a lei. Mas só que você tem um coração. O que faz com ele?”. Nessa linha, diz a jurista Bárbara Gomes Lupetti Baptista, a postura de Sérgio Moro, “comprometida por suas convicções pessoais e senso particularizado de justiça no tratamento e na condução da Operação Lava Jato, apontando, inclusive sua relação pessoal com o Ministério Público, não é inédita, nem extraordinária; é recorrente no sistema de justiça”. Segundo ela, muitos juizes brasileiros cuidam de processos, avaliam provas, decidem casos e interpretam fatos e leis a partir de sensos particulares de justiça. “Moro e a Operação Lava Jato são, portanto, a mais pura explicitação da Justiça brasileira”.

O Globo, 13/02/2022