O brasileiro Edson Arantes do Nascimento acaba de completar 80 anos de idade, o que passaria despercebido se Edson não fosse o Pelé, como é conhecido no mundo inteiro. Nelson Rodrigues comparava o maior atleta do século XX a gênios como Homero e Leonardo. Mas, acima de tudo, Pelé era a representação de nossa alegria e graça; de nossa superioridade produzida pelo drible, o risonho engenho de dobrar o outro; pelo gol inevitável e fatal, nunca igual e nem mesmo semelhante; pela festa dos estádios celebrando o que ele fazia por nós. Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse.
Como escreveu outro craque, Tostão, “a perfeição não é humana, Pelé é uma exceção”. Dessa perfeição, uma exceção, tirávamos nossa desforra de tudo o que nos maltratasse, da fome do povo à namorada que nos traía, do político mentiroso à nota baixa em filosofia, do subdesenvolvimento à praia sem sol. Pelé era o gol que nunca perdemos, mesmo que tomássemos de goleada no cotidiano. Direto de Vila Belmiro, ele nos trazia a esperança da chegada de um novo país igual a ele. Igual ou parecido, que parecido já estava muito bom.
Esse país nunca chegou e talvez nem chegue mais, pois Pelé já está fazendo 80 anos, e ninguém tem notícia de um Brasil igual ou parecido com ele: maneiro e correto, cordial e guerreiro, capaz de mudar sua própria história numa única, inventiva e solitária jogada, ou de se misturar com a equipe para reescrever a história da civilização. Não estou inventando nada, perguntem a quem jogou com ele, como Jairzinho e Tostão, como Coutinho ou Pepe. Era muito mais fácil fazer gol com Pelé no time, contando com sua íntegra solidariedade com os companheiros de valor.
Durante todo o século XX, a cultura brasileira sempre oscilou entre a procura de uma identidade nacional e o desejo de uma integração cosmopolita na ponta do mundo contemporâneo. Essa busca não foi só um empenho de poetas e artistas, de intelectuais e pensadores. Mas também de brasileiros de várias outras atividades, empenhados em nossa originalidade funcional e afetiva, capaz de nos diferenciar no mundo daquele tempo, dominado apenas por duas únicas ideias mandonas.
Nossa cultura sempre viveu dessa dualidade, entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Orgulhosos de nossa exuberância e sensualidade, começamos por nos extasiar diante do barroco colonial. Quase nunca lembramos que essas igrejas douradas eram construídas por milhões de pretos escravizados, vítimas do mais torpe, corrupto e selvagem regime social de que se tem notícia no continente. E depois, pela cor de sua pele e por sua condição social, nem permissão tinham para entrar nos templos que haviam construído.
Foi com esse “barroco espiritual” que nascemos para o resto do mundo ocidental, com nossa fama solar às vezes contestada, mas sempre defendida por alguma versão oficial. Se Gregório de Matos e Antônio Vieira nos remetiam à miséria e à podridão, ao inferno social e moral que encontravam aqui, o padre Simão de Vasconcellos foi levado ao tribunal da inquisição por afirmar que o paraíso terrestre se encontrava no Brasil.
Talvez seja o caso de levantar a hipótese de que essa originalidade nunca tenha se manifestado pra valer em nossa história social, mas ela pode ser o mais belo, profundo e secreto projeto inconsciente do povo deste país. Um projeto de invisíveis, sempre inviabilizado pelo Brasil dos infernos, às vezes detectado por mestres mediúnicos. Como Pelé. Afinal de contas, o mistério do galo não está na ilusão de que ele seja capaz de fazer nascer o sol, mas em que seu canto anuncia a existência do sol, mesmo ainda por nascer.
Nem todos os brasileiros são ou serão Pelé. Mas basta que os tenhamos em número suficiente para evitar que nossos pobres ministros ignorantes discursem, para seus jovens diplomatas, contra João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas da língua portuguesa. Que a vacina chinesa, como tudo mais inventado por lá, papel, pólvora, macarrão, bússola etc., seja condenada como imprestável por ter nascido na China. Que um manda, o outro obedece, e pronto. Para evitar, enfim, que Pelé seja apenas um retrato nostálgico na parede, mas que ele seja um exemplo poderoso do que o Brasil um dia ainda será. Love, love, love.
O Globo, 26/10/2020