É um privilégio para um país contar, como o Brasil, entre os seus quase duzentos milhões de pessoas, com um poeta da força de Nauro Machado, que vive inteiramente para a poesia e, através dela, para o entendimento das palavras e para o exercício de seu ritual permanente. Acompanho, há pelo menos meio século, os seus livros, ao longo de quarenta volumes de versos.
O quadragésimo, saído agora, revela, mais uma vez, que tudo nele é palavra. Conhece-lhe o mistério geral, conhece-lhe os pequenos mistérios, sabe dos múltiplos significados possíveis de uma palavra, entende o ritmo secreto que se apossa do verso, tornando-o uma unidade só no centro de outra unidade maior, que flui com naturalidade, mas de vez em quando salta em correnteza raivosa contra a placidez geral da paisagem.
O livro de agora, "Pátria do exílio", está inserido nessa luta contra o marasmo das coisas, sendo, como é, o terceiro e último centro do poema "Trindade dantesca", cujo primeiro e segundo cantos - "A rosa e a rosca" e "Pão maligno com miolo de rosas" - foram publicados anteriormente em volumes autônomos. "Pátria do exílio" é ao mesmo tempo dantiano e dantesco (note-se que estes dois adjetivos não são sinônimos).
Seus versos se espojam - no verdadeiro sentido da palavra, de "espojar-se", "deitar-se rolando e agitando a alma" - no meio das palavras e das rimas, umas e outras postando-se inteiramente fora de usos comuns porque mostrando um mundo que não é este, revelando mistérios das palavras, criando rimas inexistentes e, contudo, inteiramente apropriadas às novidades inesperadas e originais de som que o poeta cria, inventa e encaixa nos versos.
"Pátria do exílio" consta de mais de duzentos sextetos, com rimas que singularizam sílabas finais verdadeiras com rimas idem, além de rimas levantadas de mistérios tanto consonantais como vocálicos, numa realização que expõe o que chamo de enigma existente nas palavras, daí resultando um vigor poético raro que há decênios vem sendo sua força, colocando-o na posição de vanguarda do fazer-poesia neste país.
Os conjuntos mostram-se autobiográficos, não de um homem só, mas do homem em si, de um destino que vai além e fala por todo o destino humano. E São Luís, como cidade, representa as cidades todas que no mundo existem. Veja-se a separação de sílabas que marcam rimas neste sexteto: "Lembras-te, alma, tu te lembras/ Como foste em mim feliz, quando eu te tive sem blas-/ Fêmia alguma em São Luís,/ Alçando o vôo de asas trê-/ Mulas como em bem-te-vis".
A separação entre "Trê-" e "Mulas" para dizer "Trêmulas" faz parte desse esgarçar de palavras que aí mostram de novo seu mistério, com Lisboa servindo sempre de um sonho nunca realizado, terra nunca visitada. Mas Fernando Pessoa aparece em outra lembrança irreal: "Mas se Fernando Pessoa/ Em outros se dividiu,/ Meu ser é uma pessoa/ Que nunca em mim existiu,/ Nem tão má ou nem tão boa,/ Pois feita de híbrido cio".
Depois de meio século de experiência nauriana, descubro agora que ele veio, esse tempo todo, liberando de si um poema só, sempre mudando, mas sempre fiel a uma linha, começado naquele "Campo sem base" de 1958 e chegando a este "Pátria do exílio" - e descubro também que todo poeta, embora nem sempre o consiga, deseja exatamente isto, escrever um só poema que dure toda a sua vida, numa síntese em que o mistério das palavras se desenrole sem parar, verso após verso, dia após dia, ano após ano, que uma vida é pouca para um poeta perder tempo em não pegar todas as palavras que passem por ele para lhes dar a vida que elas não têm porque só ele, o poeta que vive inteiramente para isto, como Nauro Machado, pode torná-las vivas.
"Pátria do exílio" sai pela Lume Edições, de São Luís do Maranhão. Digitação e diagramação de Arlete Nogueira da Cruz, foto interna de Albani Ramos, capa: desenho de Salvador Dali e orelha de José Chagas.
Tribuna da Imprensa (RJ) 27/2/2007