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O menino Gilberto

 

Gosto muito de recordar a rica convivência com Gilberto Freyre, a partir de privilegiar o que me disse dos seus dias de menino. Tanto do menino considerado um quase caso-perdido, por só tão tarde ter aprendido a ler e a escrever, como do menino que se encontrou ao descobrir o engenho, nos dias vividos em São Severino do Ramo, no município de Paudalho, Zona da Mata de Pernambuco. Tanto do pai-menino que se imiscuía na administração do Prata, o clube de garotos a que seu filho Fernando deu vida, em Apipucos, como dos meninos encoletados em couro, meio vaqueiros meio cangaceiros, que mereceram sua atenção de intérprete do Brasil. E não falemos dos meninos açucarados dos engenhos, nem dos meninos dos mangues do Recife, estes, espécie de versão pernambucana dos Capitães da Areia.


Meninos urbanos e rurais comparecem toda hora em sua obra. Meninos de rua, como aquela molequeira a acompanhar os palhaços de circo e meninos de casa, resguardados para vocações sacerdotais, como o filho de dona Sinhá, que aparece na seminovela que escreveu e da qual não guardo imagem de livro bom.


Meninos brasileiros, cheios de apelidos como os seus netos. A esses, desejou sempre não lhes faltasse infância, inclusive aquela do rolete de cana, do alfenim, da pipa, do pião, do pastoril, do cavalo de pau.


Nunca deixei de atentar o quanto houve de influência sua para que Zélins do Rego, esse inesquecível menino de engenho, vigiasse no que havia na vida de um homem em conseqüência dos dramáticos, dos líricos dias de infância.


Essa sua arteciência de remexer a vida brasileira é coisa de menino buliçoso, a futucar baús velhos, armários, cartas, jornais, receitas de bolos e doces, e a ativar reminiscências de antigas babás, a recordar banhos de rio - no Capibaribe, predominantemente pecuarista, no Tracunhaém, exclusivamente canavieiro - enfim, a nos trazer os "amarelinhos" e as libertinagens de quem vai saindo da infância.


Menino é o que Gilberto sempre buscou ser, ao seguir a lição de Nabuco, a de que só o poder de infância é capaz de criar, tanto que a gilbertiana não apenas designa o Brasil mas significa o Brasil, em função disso.


Gilberto Freyre ao refletir sobre a civilização da cana-de-açúcar nunca deixou de insistir naquela advertência que percebeu menino, lá em Paudalho: "cada pé de cana é um pé de gente."


É assim que precisa ser tratado todo o setor canavieiro, de tantas responsabilidades para o bem-estar da região e do país. Quando Antonil, nos começos de 1700, alertava: "Para os que não sabem o que custa a doçura do açúcar a quem os lavra, o conheçam", sentenciava para os anos presentes.


Os meninos do meio rural nordestino não são mais pequenos príncipes de um reinado açucareiro.


Certa vez ao falar aos netos de Gilberto Freyre dizendo-lhes do muito que o avô significava, insisti em destacar que o avô toda a vida como um menino escutou conversas de adulto e se antecipou; como um menino fez ouvido de mercador a quantos adultos lhe dissessem "cala a boca menino", toda vez que precisava falar; como um menino buscou sempre os encantos que há nas bomboneiras da vida; como um menino procurou a convivência alegre dos moços, até mesmo já semiprovecto, escolhendo uma menina, estudante de educação física, para casar. Observei que as meninices nada infantis do avô, o regionalismo nada caipira do avô, a imunidade nada condescendente ao convencional do avô, a claridade sem claro-escuro do mundo brasileiro revelado pelo avô dava-lhes condição para entender por que o avô procurou dizer, como o poeta, o que sentia sem pensar em que o sentia.


Coisa de menino, apto às manhãs de criação.


Diário de Pernambuco (PE) 20/9/2007