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O melhor verso

 

Faz tempo, fizeram um concurso para se saber qual o verso, isolado, que deveria ser considerado o mais bonito da literatura brasileira. Ganhou, acho que disparado, aquele verso de Castro Alves: "Auriverde pendão da esperança".


Que é bonito, é. E mais bonito fica no contexto, as duas últimas estrofes do mais conhecido poema do autor, "O Navio Negreiro". Pessoalmente não sou muito vidrado no auriverde pendão, embora trema de emoção com as citadas estrofes. Lembro-me delas recitadas por Paulo Autran, num dos momentos mais emocionantes do "Liberdade! Liberdade". Além de bonitos, um apelo à justiça, em falta naquele tempo.


Manuel Bandeira remou contra a corrente, escolhendo o verso de um sucesso popular, "Chão de Estrelas", de Orestes Barbosa: "Tu pisavas os astros, distraída". Bom mesmo. Mas não seria esse o meu preferido, não existente ainda ao tempo do concurso.


Outro muito citado, mas não escolhido, foi o quarto verso do mais famoso soneto de Raimundo Correia: "Raia sanguínea e fresca a madrugada". Outro dia, aventando a hipótese de FHC entrar para a Academia, garanti que talvez votasse nele, desde que soubesse recitar, de cor e de improviso, "As Pombas", soneto que transporta o verso pelo tempo afora.


Gosto desta madrugada sanguínea e fresca. Mas, de olhos fechados, sem dúvidas e sem pejo, iria de Aldir Blanc, num verso mais ou menos recente: "Um torturante band-aid no calcanhar". Não é um verso formalmente bonito -nem bonito em si mesmo.


É toda a definição de um clima, da mulher brasileira comum, agarrada a seu homem, dançando dois pra lá, dois pra cá, num baile modesto e cafona, oposto aos bailes suntuosos das valsas de Strauss e Lehár, que são imperiais, vienenses e nada têm com a gente. Só um torturante band-aid no calcanhar pode explicar o amor acima e além de todas as coisas.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 07/12/2004

Folha de São Paulo (São Paulo), 07/12/2004