POR ACASO , como sempre, peguei pedaços de filmes antigos, "O Médico e o Monstro", de Victor Fleming, com Spencer Tracy, Ingrid Bergman e Lana Turner, e "O Terceiro Homem", de Carol Reed, baseado num dos romances ligeiros de Graham Greene, com Joseph Cotten, Orson Welles, Alida Valli e Trevor Howard, mais aquela musiquinha que fez tanto sucesso, de Anton Karas, em solo de cítara.
Creio que já registrei, tempos atrás, uma visita recente ao filme inspirado em Robert Louis Stevenson. As cenas finais, com Mr. Hyde pulando muros na neblina de uma Londres vitoriana, foram uma reminiscência que chupei, inconscientemente, para as cenas finais de um romance que publiquei no final dos anos 50.
Foi isso que me espantou, quando há tempos revi o filme em versão berrantemente colorizada. Mas ontem, à meia-noite, "hora que apavora, eu caindo de sono e fadiga", revi o filme de outro ângulo. Fiz a apresentação do romance de Stevenson numa das edições brasileiras (não lembro se da Civilização Brasileira ou da Ediouro) e acentuei o lado moralista do livro ao condenar o processo científico. O homem deve se impor limites quando pretende ir ao fundo do fundo das coisas?
Ontem, contudo, não pensei nas coincidências das cenas finais do filme com as cenas também finais do meu romance. Tampouco com o caráter moralista da história, que condena a curiosidade humana de conhecer, além dos limites religiosamente corretos, a alma de cada homem.
Mr. Hyde tem consciência o tempo todo de que é Dr. Jekyll e o despreza. Por sua vez, o Dr. Jekyll sabe que se transforma em Mr. Hyde e o condena com horror. Em nenhum momento eles coabitam espiritualmente, apenas materialmente, um mesmo corpo, ainda assim com profundas alterações na voz, no olhar, no rosto. Tanto um se transforma no outro que ninguém percebe que o médico é o monstro e vice-versa. Somente ele sabe. Daí que, até chegar ao clímax da história, ele vai se habituando com as duas faces da sua alma.
Pulo dele para mim, ou melhor, para qualquer outro homem, mas, sobretudo para mim, cuja história conheço com mais detalhes. Tenho as duas faces antagônicas, não sofro nenhuma mudança radical quando estou num ou noutro papel. Continuo o mesmo. Quando sou monstro, não desprezo o homem normal. Quando sou homem normal, não condeno o monstro, pelo contrário, tento desculpá-lo, ou esquecê-lo.
Algumas cenas de ontem (não leio o romance há muito tempo, por isso falo mais do filme) me assustaram.
A diferença básica é que o Dr. Jekyll precisa tomar uma poção mágica de sua invenção para se transformar em Mr. Hyde. Ele provoca a aparição do monstro bebendo a droga que descobriu. Não fora isso, jamais o Dr. Jekyll se transformaria em Mr. Hyde.
Na história que escrevi, não há esse elemento externo, esse fator de fora operando a modificação do médico em monstro. Meu personagem convive com os dois o maior tempo possível, um ignorando o outro. E como qualquer romance pode ser a autobiografia involuntária ou disfarçada do próprio autor, convivo quase cordialmente com os dois lados, de forma isenta -o que não acontece na obra de Stevenson.
Não sei, acho que preciso pensar nisso com mais profundidade, sobretudo porque o resultado deixa o Dr. Jekyll embaralhado com Mr. Hyde dentro e fora de si mesmo.
Bem, o outro filme, "O Terceiro Homem", me impressionou pela estupenda fotografia em preto-e-branco, uma Viena barroca, cenários que me marcaram, estive na roda-gigante do Plater, na qual Orson Welles diz a famosa frase sobre os Bórgias da Renascença e os suíços do relógio-cuco. Fiz o mesmo trajeto no cemitério onde Joseph Cotten espera por um sinal de Alida Valli, cuja beleza sempre me perturbou.
Curiosamente, nesta nova visita ao filme - a quinta ou sexta-, gostei mais da música que fez sucesso na época. Ela dá um clima absurdo ao cenário. Numa Viena tão musical, Schubert, Beethoven, Brahms, Mozart, os Strauss, Mahler, Lehár, foram buscar a cítara de um grego -acho que é grego. Coisas.
Folha de S. Paulo (SP) 31/10/2008