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O maior sinal de todos os tempos

 

Os dois carpinteiros ficariam assombrados se conhecessem o destino daquela encomenda


DOIS CARPINTEIROS , numa oficina não muito longe do templo, estão aplainando duas peças de madeira.


A encomenda fora feita por alguém do palácio de Pilatos. Trabalham em silêncio, com suas ferramentas: a lâmina dentada para serrar, a lâmina polida para aplainar. Pouco depois, colocaram uma das peças cruzando a outra.


Antes do meio-dia, virão buscar aquele instrumento de ignomínia no qual deverá morrer um condenado. Na véspera, eles haviam entregado duas encomendas iguais para que nelas morressem dois ladrões, um de Jerusalém, outro de Samaria.


O trabalho termina: a cruz está pronta. Deixam-na do lado de fora, é um objeto que não será roubado por ninguém.


Os judeus nem sequer a tocariam. Os soldados romanos, que desprezavam tudo o que os judeus produziam, viriam apanhá-la para a execução do condenado.


Os dois carpinteiros fecham a oficina; um deles vai beber na nova taberna aberta no caminho que leva a Jericó; o outro se dirige para casa, pouco antes da porta de Damasco. Eles não sabem que acabaram de criar o maior símbolo da história.


Nem Fídias, nem Michelangelo, ao esculpirem mármores imortais, jamais fizeram algo que se aproximasse da universalidade daqueles dois madeiros cruzados.


Erguida num morro próximo à cidade, que desde os tempos de Davi chamavam de Gólgota, e que os romanos, supersticiosos, chamavam de Calvário (parecia um crânio sinistro e calvo), aquela cruz iniciaria sua trajetória mansamente.


Durante os próximos três séculos, enfrentaria a cólera dos imperadores de Roma. Venceria-os um a um.


Milhões de seres humanos morreriam com os olhos fixos naqueles dois madeiros atravessados. Em sua simplicidade, seria o instrumento mais poderoso produzido pela mão do homem.


Atravessaria os séculos em estandartes que conquistariam o Velho Mundo. E romperia os mares no mastro das caravelas que descobririam o Mundo Novo. Seria gravado a fogo no punho das espadas e também no escudo de aço dos cruzados. Encimaria o pórtico dos castelos. E, à sua sombra, peregrinos de todos os tempos procurariam refúgio e consolação.


Gosto de citar, à minha maneira e com as minhas palavras, o prefácio que Wilson Barrett escreveu para um romance que foi filmado pela Paramount ali pelos anos 30. Humberto de Campos, no Brasil, fez o mesmo. Giovanni Papini, na Itália, incorporou a mesma idéia em sua biografia de Cristo.


Dois simples madeiros, toscamente aplainados, foram reproduzidos em ouro e prata no peito de milhões de crentes e, transformados em mármore ou bronze, assinalariam milhões de túmulos daqueles que, confiados em sua fé, esperam a ressurreição dos mortos.


O gesto primário de quem assinala um ponto ou dele toma posse é repetido todos os dias, há mais de dois mil anos, na cabeça das crianças, no peito dos mortos, nas mãos que se casam, na testa daqueles que pedem bênção. E tudo nasceu naquela tarde em Jerusalém, quando dois carpinteiros aplainavam dois madeiros que nada significavam.


Em alguns lugares, a pena de morte por crucificação importava num suplício suplementar ao condenado: ele teria de levar o instrumento de sua tortura, a haste mais pesada. O braço seria pregado no local do sacrifício.


Assim fora feito na véspera, com as duas cruzes destinadas aos dois ladrões. Mas haviam recebido instruções para pregarem o braço na haste a fim de que o condenado daquela tarde tivesse maior peso para carregar. O que fizera ele para merecer um castigo a mais?


Só sabiam que era um forasteiro que viera ao templo para celebrar a Páscoa. Que crime cometera ele? Os dois carpinteiros ficariam assombrados se conhecessem o destino daquela encomenda. Nenhuma máquina fabricada pelo homem teria a formidável força daquele sinal.


Eles fecharam a oficina, um deles dirigiu-se à nova taberna onde -diziam- se bebia um vinho forte, produzido não longe dali, nos vinhedos de Jericó. O outro foi para casa, situada pouco antes da porta de Damasco, preparar-se para o Shabat -que começaria quando a primeira estrela, solitária, brilhasse sobre o deserto da Judéia.


(Leitora de Piracicaba pediu-me que publicasse hoje esta crônica de 1997.)


Folha de S. Paulo (SP) 21/3/2008