No começo de 1993, pouco depois da publicação de meu livro "O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues", recebi um telefonema de Lucia, segunda mulher do escritor. "Ruy, falei ontem com Nelson. Ele leu o livro, gostou muito e disse, ‘Depois que morre, todo mundo vira santo!’ Que tal?" Do outro lado do fio, fiz gulp. O problema não estava em Nelson ter dito alguma coisa a Lucia, mas em ter dito qualquer coisa. Morrera em dezembro de 1980 e estava enterrado no São João Batista. Mas Lucia, pelo visto, tinha seus canais para falar com Nelson. Escutei e agradeci. É raro um biógrafo ser avaliado por seu biografado morto há tanto tempo.
Nada também como a posteridade para corrigir reputações. Nelson Rodrigues passara a vida carregando a fama de tarado, pela obsessão em extrair os podres nas pessoas que se diziam "de bem", e de reacionário, por seu anticomunismo, comum entre intelectuais na Guerra Fria. Os dois lados só concordavam numa coisa: seus inimigos, contra a vontade, desconfiavam de que Nelson era um gênio do teatro; já seus admiradores tinham certeza disso, e não apenas no teatro —também no romance, no conto e na crônica.
A posteridade deu ganho de causa a estes últimos. Para isso contribuiu a publicação, logo após a biografia, da obra de Nelson fora do teatro. Saiu em 12 volumes numerados, pela Companhia das Letras, organizados de forma a torná-la compreensível. Em pouco tempo, a reputação de Nelson como um arguto pensador brasileiro estava estabelecida. Suas frases e expressões, repetidas por todos, nos ajudavam a entender o país.
A do "complexo de vira-lata" ficou famosa. Outra, a de que "em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices". E uma terceira, de 1970, quando o Brasil se gabava de ser o maior país católico do mundo: "Ainda seremos o maior país ex-católico do mundo".
Se ainda não somos, estamos chegando lá.