Com o fim das eleições, a presidente Dilma acena para a esfera da união e do diálogo, disposta a ouvir a sociedade civil e a superar o déficit do primeiro mandato, de uma presidente técnica, quase sem tempo para ouvir as partes contrárias e negociar. É um grande sinal da presidente, que tira importantes lições das urnas. Espera-se da oposição a mesma atitude, equilibrada, sem vitimização, livre da má leitura de que a vitória de Dilma na verdade é uma derrota sem precedentes, ao passo que a derrota de Aécio é, na verdade, uma vitória estrondosa.
Sejamos claros, de uma vez por todas. O país não está dividido por um abismo irredutível, hermeticamente fechado em bolsões e colégios eleitorais. Trata-se de uma análise que deixou de funcionar desde o dia 26 de outubro, após seis meses de uma teologia primitiva, que atravessou a campanha de ponta a ponta: entre deus e o diabo, o sudeste e o nordeste e outras aberrações, que prefiro não escrever.
Lembro do clássico “Raça e história”, onde Lévi-Strauss diz que a humanidade parece “terminar” nos limites da língua ou da tribo. Traz um exemplo conhecido. Enquanto na Europa dos Descobrimentos os teólogos indagavam se os índios possuíam ou não uma alma, aqueles mesmos índios afogavam os prisioneiros brancos para verificarem se seus corpos estavam ou não sujeitos, como os demais, à decomposição.
É preciso abaixar o volume, com os decibéis que exaltam e demonizam governo e oposição, como duas “tribos” e “línguas” que não podem negociar, ou porque não têm alma, ou porque morrem, decompostos. Claro que não se trata de perder o senso crítico, as categorias ideológicas intrínsecas, a diferença da compreensão do desenho de país que os distingue. No entanto, insistir na ideia de dois Brasis não ajuda a criar uma zona de convergência mínima, em torno da qual governo e oposição possam atuar de forma republicana. As urnas legitimaram a transferência de renda (que já se inscreveu nos anais da história, a contrapelo), os programas assistenciais que não foram criados para uma eternidade, mas como capítulo provisório, urgente e necessário para acabar com o ultraje da desigualdade em nosso país, que deixou de figurar no mapa da fome.
A presidente Dilma sabe quanto resta por fazer, a espessura dos desafios, a começar pela reforma política e eleitoral, teste para a situação e a oposição.
Penso no Brasil como um livro de páginas em branco, ainda por escrever, livro aberto, de vastas proporções, que começa a se desenhar a partir das margens, das notas de pé de página, sem índice, ainda, porque incompleto, em construção. Um livro polifônico, habitado pela diversidade, povoado por muitos olhos, vivos. Livro com assinatura incerta, flutuante, onde o presente não esconde o rosto luminoso do futuro.
Porque o presente é nosso único tesouro, o terreno fértil não para convocar o futuro, mas para construi-lo, com adesão e esperança.