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O livro didático que está na berlinda

 

Há duas semanas a imprensa vem trazendo ao conhecimento de todos nós, críticas contundentes ao livro didático apoiado pelo Ministério da Educação, que  declara em  alto e bom som que seus leitores, adultos e jovens alunos, podem dizer “nós pega o peixe” ou “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado". Diante de tanto barulho e de tanta crítica saída dos mais variados setores da sociedade, alguns leitores desta nossa coluna insistem em que comentemos as lições do livro “Por uma vida melhor", cujo capítulo 1 da Unidade 1—Língua Portuguesa— foi preparado pela professora Heloísa Ramos e trata do tema "Escrever é diferente de falar", assunto que se estende pelas páginas 11 a 27.
  
Por mais que tentássemos obter a obra para ter uma ideia mais extensa das lições e da metodologia empregada, não nos foi possível consegui-lo,de modo que nosso comentário se restringirá ao capítulo que deu origem às aludidas críticas. Partindo da tese central de que “escrever é diferente de falar”, encontra a Autora oportunidade para estabelecer a distinção do aprendizado da língua falada [aprende-se a falar a língua materna “espontaneamente, ouvindo os adultos falarem ao seu redor”] e da língua escrita [que “exige um aprendizado formal”(...). “Alguém se dispõe a ensinar e alguém se dispõe a aprender” (...) “Geralmente há local, momento e material próprios para isso”] (pág. 11).     

A partir dessa distinção, enfatiza a Autora que “o aprendizado da língua escrita requer acesso a textos escritos, ou seja, aprendemos a ler lendo e a escrever escrevendo” (pág. 11). Mostrando que tal aprendizado exige empenho e força de vontade, insiste: “No começo você pode achar difícil, mas os resultados compensarão.” O aprendizado da escrita enseja à Autora falar de uma variedade da língua portuguesa, a norma culta, que cumpre estudar. Diz que “não há um único jeito de falar e escrever", exemplificando com as variantes regionais e as que “podem ser de origem social”, e sobre estas comenta: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio —vale lembrar que a língua é um instrumento de poder—, essa segunda variante é chamada de ‘variedade culta’ ou ‘norma culta’, enquanto a primeira é denominada ‘variedade popular’ ou ‘norma popular’ (pág. 12). Neste momento, a Autora, visivelmente influenciada, por noções da Sociolinguística, abre espaço para futuramente agasalhar “Nós pega o peixe”, e assim desenvolve sua argumentação:“Contudo, é importante saber o seguinte:as duas variantes são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior prestígio. Nesse sentido é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros. Esse preconceito não é de razão linguistica, mas social. Por isso, um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana” (pág.12). E conclui corretamente:“(...) a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário”(pág. 12). 

Depois dessas conceituações válidas em  Linguística e em Didática de língua materna, a Autora, partindo de redações de alunos e de livros, estuda o emprego do ponto para separar orações, algumas regras de acentuação gráfica, uso de pronomes oblíquos átonos nas suas diversas formas(o, lo, no) e flexões, emprego de ‘ele’ como objeto direto na norma informal e concordância verbal e nominal. Tudo ia muito bem na sua descrição do português, quando o vezo do linguista fê-la, extrapolando, confundir-se como professor de língua portuguesa, e pôr em relevo a nobilitação da norma popular em face do preconceito com que, na opinião da Autora, a classe “dominante” critica os menos escolarizados. E num local, momento e material impróprios defende a lição seguinte:“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. “Você pode estar se perguntando:Mas eu posso falar ‘os livro’? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”(p.15). Assim também justifica as concordâncias ‘Nós pega o peixe’  e 'Os menino pega o peixe’. Como bem se referiu a Autora, em páginas atrás, que há "local, momento e material próprios" para ensinar a escrever e falar segundo o padrão da norma culta, acreditamos que a exposição até aqui não oferece  o local, nem o momento, nem o material próprios para a defesa das aludidas discordâncias. Um livro que leva o aluno a empregar os pronomes oblíquos, nos exercícios da página 21:“não conseguiu localizá-lo”, “eliminaram-nas”, é porque está atento e comprometido com a melhoria dos jovens e adultos para quem foi escrito.    

Outro momento que, a nosso ver, destoa deste propósito é ter perdido a Autora, a oportunidade de oferecer aos leitores mais textos escritos que exemplificassem a norma culta; em vez disto, apresenta-lhes, com melancólico voto laudatório, a paródia de Juó Bananére ‘Migna terra’, vazada num improvável dialeto ítalo-português “oral de sua época”, contrário a tudo que vinha ensinando, numa oposição à ‘Canção do exílio’, de Gonçalves Dias, que mereceu da Autora o conceito de “postura‘patriota’extremamente sentimental”, poema que poderia ser aproveitado para comentários pertinentes a vários aspectos, entre os quais, casos linguísticos abonadores dos fatos explanados no capítulo.       

Gosto não se discute. Como bem disse o linguista italiano Raffaele Simone, enquanto a posição populista perpetua a segregação linguística das classes subalternas, a boa educação linguística deverá ajudar a sua libertação. O trabalho da Autora é digno de leitura e proveito; só lhe criticamos os comentários que mereceram a justa repulsa da sociedade brasileira. Esperamos que entenda nossas críticas e sugestões com o propósito honesto de ver o livro melhorado em próxima edição.   

 O Dia (RJ), 22/5/2011