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O litoral e o sertão

 

Um dos livros mais curiosos de Alceu Amoroso Lima analisa, compara e estuda Machado de Assis, numa espécie de confessionário por não ter mencionado o nome de Machado em nenhum de seus livros de crítica literária publicados ao longo de quase vinte anos. Mas em 1939, centenário do nascimento de Machado ele achou que não podia ficar quieto e escreveu os seus "Três ensaios sobre Machado de Assis", publicado em 1941, em que faz um paralelo entre Machado e Euclides da Cunha.


Os dois entraram quase juntos na imortalidade. Machado morreu em 1908, Euclides em 1909. Euclides da Cunha era o sertão. Machado de Assis, o litoral. Euclides, a voz do povo. Machado, a voz da elite. Um derramado, impetuoso de sentimento e de estilo. O outro sóbrio, contido, tímido. Um desdenhando o bom gosto que o outro cultuava com esmero. Predominava num a terra e, no outro, o homem. Naquele, o espírito científico, neste, o espírito literário. Euclides era a afirmação e o entusiasmo. Machado, a hesitação e o sorriso.


Num se espelhava a agitação do nosso caldeamento étnico, os ímpetos bravios de nossa barbárie latente. O outro vinha estender sobre esse tumulto nativo o manto ilusoriamente pacificador do pensamento requintado e sutil. Todas essas classificações são de Alceu, que não deixava de dizer que, nos casos de Machado e Euclides, cada um tinha ao seu jeito a ausência da fé religiosa.


Como conciliar os dois espíritos que, sob muitos aspectos, ainda predominam e se opõem no Brasil? Alceu poderia ver o caminho na fé que adotara e à qual nenhum dos dois pertencera. Em Machado, o final de "Memórias póstumas" e "Quincas Borba" como que fugiam do caminho católico. A outra dicotomia - litoral e sertão - era também alheia em principio a uma classificação religiosa, embora o acontecimento de Canudos fosse inteiramente religioso.


Talvez se possa dizer que nenhum dos dois - Machado ou Euclides - fosse um escritor que unisse os dois lados. Podemos admitir ter Guimarães Rosa representado os dois, mas, numa análise cuidadosa, poder-se-á ver que Rosa está mais perto de Euclides.


Como o ano que vem marcará o centenário da morte de Euclides da Cunha, teremos a oportunidade, nos muitos festejos, nas conferências, nos artigos e nos livros que serão dedicados a Euclides, de aumentar nossa consciência da presença de escritores que nos representam. Poderemos, inclusive, retomar os estudos de Euclides sobre a Amazônia, que muitos acham tão importante como os que escreveu sobre o Nordeste e, a propósito do centenário de Euclides, lutar contra o crime que vem sendo cometido na Amazônia com a destruição de áreas e mais áreas de florestas.


Em sua "Explicação prévia" assim diz Alceu Amoroso Lima: "Reúno, neste pequeno volume, três pequenos ensaios sobre Machado de Assis. Foram publicados em datas diferentes. O primeiro em 1935 (em "O espelho", março de 1935). Os dois outros no ano do centenário (em "O jornal", 5/12 de março e 3/10 de dezembro de 1939).


No primeiro, tento explicar o motivo de um silêncio de quinze anos que mantive em torno da figura literária brasileira que mais impressionou nossa geração. No segundo, esboço uma aproximação entre as duas figuras mais expressivas dos lados opostos de nossa literatura nacional, Machado de Assis e Euclides da Cunha. No terceiro, enfim, faço um rápido balanço de algumas obras mais características que sobre ele se publicaram no ano do Centenário".


O livro de Alceu Amoroso Lima "Três ensaios sobre Machado de Assis", foi lançado em 1941 pela Editora Paulo Bluhm de Belo Horizonte e fac-similado em 2000 pelo selo Bluhm, da Editora Ao Livro Técnico .


Tribuna da Imprensa (RJ) 12/8/2008