Éramos primos e da mesma idade, tinha pavor dela. Sua mania era me morder no rosto, eu era bochechudo e acho que isso a atraía. Quando vinha passar dias em nossa casa, eu vivia escondido nos fundos do imenso quintal onde o pai criava galinhas. Era um horror quando nos encontrávamos. Ela vinha diretamente em cima de mim, os dentes cerrados, como uma bruxa mirim.
Crescemos. Ela aprendeu piano. Eu aprendi órgão no seminário, quando saí, ela cismou de me ensinar piano -não parece, mas órgão é instrumento de sopro e piano é instrumento de corda. Havia macetes que eu não superava e ela insistia, tocávamos a quatro mãos. "O Lago do Como" era a peça de sustentação, mas ela era boa nos tangos, "Uno", "Nostalgias", "Por una Cabeza". Quando eu errava, ela me batia nos dedos -eu ficara magro e não era mais bochechudo.
Formou-se em pedagogia e foi contratada para dirigir uma escola mantida pelo Ministério da Educação, em Desengano, cidadezinha perdida nos fundos do velho Estado do Rio. O ministro foi inaugurar a escola, e tio Joaquim, doente, pediu que eu fosse até lá, representando a família.
Antes da cerimônia oficial, quando ela seria a oradora principal, rolamos na cama dela, mas sem penetração, só na base do abraço e do beijo.
Casou-se com um neto de japoneses que tinha uma criação de peixes decorativos, viveria disso o resto da vida. Tio Joaquim entrara em fase terminal, no dia do casamento pediu-me que fizesse o papel dele, levando-a ao altar.
Foi a última vez que a vi. Logo após o casamento, acompanhou o marido que foi morar no Japão. Ano passado, quando estive em Nagasaki, passei por uma loja que vendia aquários e peixes ornamentais. Da casa ao lado, vinha o som de um piano tocando "O Lago do Como".