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O judas do Cantizano

 

Apesar da tentativa de reabilitação de Judas, com base num texto escrito 300 anos após o episódio da traição, e em contradição com mais de 80 Evangelhos paralelos e conflitantes, inclusive os quatro que foram adotados pela história ocidental (eram relatos orais que somente mais tarde receberam versão escrita), o dia de hoje, Sábado de Aleluia, terá alguns judas pendurados nos postes de várias cidades.


Não faltam judas por aí, eles se sucedem monotonamente e às vezes nem chegam a ser traidores, mas traídos, como é o caso dos cornos mais ostensivos de determinados bairros.


Na rua Lins de Vasconcelos, todos os anos havia dois judas eméritos, como os professores e bispos que passam de certa idade. Eles compareciam aos postes pelo conjunto de obra. Um deles era seu Werner, um suíço que tinha um armazém cujos preços eram altos e produtos eram deteriorados.


Outro era um sapateiro, chamado Cantizano, cuja mulher, uma loura oxigenada do largo dos Pilares, dava para muitos. Era o caso do traído que entrava no rol dos traidores, pois a obrigação dele devia ser a de tomar conta da mulher. De certa forma, traía aqueles que desejavam ir nas águas da mulher e, por um motivo ou outro, ficavam de fora do redil. Houve um ano em que o pai ajudou na confecção de um judas do Cantizano. Minha mãe descolou umas calças velhas, um paletó que não cabia mais nele, os vizinhos trouxeram estopa, sapatos, até que o judas ficou elegante. Foi queimado em praça pública quando os sinos do Aleluia tocaram na matriz de Nossa Senhora da Guia.


Manda a tradição que haja um testamento pendurado no pescoço do judas. Naquele ano, quem redigiu o testamento foi o pai. Citou alguns traídos da história, de Napoleão a Euclides da Cunha. Mas deixou escapar uma frase que o comprometeu: ameaçou fazer judas do Cantizano outros anos até que a mulher dele desse para "todos".


 


Folha de S. Paulo (São Paulo) 15/04/2006

Folha de S. Paulo (São Paulo), 15/04/2006