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O impacto da nossa democracia

 

Na recente conferência de Túnis, o mundo islâmico referiu-se especificamente ao Brasil no desfecho de um encontro amplo sobre os impasses do diálogo internacional, à sombra do terrorismo do nosso tempo. Estava em causa um horizonte às vésperas de uma "civilização do medo", e do entrincheiramento das desconfianças recíprocas, acirradas pelo abate das torres gêmeas de Nova York. A mensagem básica era de que o Islã é cultura constitutivamente tolerante, e que as ações do grupo Al Qaeda e congêneres vão a um extremismo diferente dos conflitos clássicos de minorias radicais.


Estaria em causa uma rebelião do inconsciente coletivo do universo muçulmano, submergidos na sua visão de mundo, pela avalanche da tecnologia contemporânea, chegada a própria expropriação do imaginário. A coerção ampla sobre os sectários da Al Qaeda não impediria a aparição crescente dos homens-bomba, solitários na sua devastação anônima e sem volta.


Até onde foi despertado pela catástrofe das torres o inconsciente de forra e de resposta ao quanto o Ocidente, na sua visão de progresso, avassalou a identidade de outras culturas, e se expõe ao revide de sua afirmação tardia? Nesse aspecto, o terrorismo ameaça se eternizar como uma onda coletiva, que não pode ser controlado apenas pela super-repressão, e desarme de potenciais agressões químicas ou mesmo nucleares.


O essencial é o desarme contumaz, progressivo, da radicalidade no seio da própria sociedade civil, e nela do efeito antídoto e único que a democracia representa à passagem do dissenso ao protesto ao fanatismo e, afinal, à ação terrorista como cancelamento do outro, visto como o inimigo sem perdão. Tanto o protesto se exprima, logo e poroso, tanto ele se escoa no tecido social e é a rede democrática que permite à sociedade contemporânea conviver com a diferença para não se submeter à tirania sem volta de um mundo uniforme.


A Conferência debateu a ilusão de que o terrorismo só se vence com governos fortes e o descarte da democracia, como luxo dos países desenvolvidos. A aceitação do dissenso no sistema político é que desmonta o caminho das polarizações e a sua carga tenebrosa de radicalidade. A receita do abate da violência é a do pluralismo e do respeito das minorias, que pede uma sociedade complexa. E mencionou-se repetidamente o exemplo da experiência brasileira de hoje no que o governo Lula apresenta de coincidência entre o desenvolvimento econômico e a democracia política, um pouco desmentido ao imperativo dos Estados autoritários nas nações emergentes.


É um novo trunfo o do nosso país, a mostrar que o pluralismo político é a primeira condição para que as vontades gerais de uma nação encontrem o termo médio, sempre, das suas diferenças e não o populismo arregimentado de regimes plebiscitários, em que envereda a Venezuela de hoje, com possíveis seguidores na América andina. O Brasil da nova prosperidade, da melhoria da distribuição de renda e do acesso social crescente é também o da corrupção, ou do abuso do poder político, ou das máquinas de apropriação dos dinheiros públicos. Mas hoje, e pela primeira vez, submetidas ao processo e a denúncia criminal, às algemas postas nos poderosos e ao poder de polícia que não para mais nos gabinetes.


Nestas dimensões para além do simples cerimonial das eleições, o Brasil de hoje vai à democracia profunda. Esta que a conferência de Túnis reconheceu como a defesa mais eficiente ao desenfreio da violência típica do século 21, ameaçado da desesperança dos destituídos sem volta, e dos expropriados, até, do verdadeiro imaginário da mudança.


Jornal do Brasil (RJ) 28/11/2007

Jornal do Brasil (RJ), 28/11/2007