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O homem terminal

 

Na Semana passada, vi a reprise de um filme sobre o Dr. Morte. Devo de início elogiar a atuação de Al Pacino no papel principal, uma das melhores que já vi no cinema de todos os tempos.
 
Confesso que não me interessei pelo caso na devida ocasião, não acompanhei suas proezas nem seus julgamentos e só assisti ao filme na TV por falta de opções. Nem sequer guardei o nome do personagem, nome complicado, parece que de origem armênia. Nem mesmo guardei o nome do filme.
 
Mas fiquei impressionado com algumas cenas, sobretudo aquela em que, numa de suas prisões, ele gritava que a sociedade estava na Idade Média e invocava, entre outros, o nome de Galileu.
 
O Dr. Morte tinha uma posição contrária à eutanásia, considerando-a um homicídio. O doente terminal não era ou não podia ser consultado, a decisão era tomada pela família ou pelos médicos que afastavam os equipamentos ou deixavam de aplicá-los, interrompendo a assistência médica considerada inútil e cara.
 
No caso do Dr. Morte tratava-se na realidade de um suicídio assistido, o doente terminal, esgotados todos os recursos da medicina e não suportando as dores, autorizava a aplicação de uma injeção letal.

Ele tinha uma fórmula e um processo para abreviar o sofrimento insuportável do paciente.

Em alguns países, creio que na Suíça (posso estar enganado), o suicídio assistido não é considerado um crime. Evidente que é um assunto polêmico, condenado pela totalidade dos médicos cuja missão é salvar vidas, e não apressar a morte consentida ou mesmo implorada pelos doentes terminais.

E a sociedade, em seu atual estágio, também recusa a prática -daí as várias condenações que o Dr. Morte sofreu, sendo que na última, a muitos anos de cadeia, ele veio a morrer sem cumprir a pena integralmente.

Como disse, é um tema mais do que polêmico. Um doente terminal, esgotados todos os recursos da ciência, mas lúcido o bastante para decidir sobre si mesmo, teria o direito de pedir a morte uma vez que está sem condições de suicidar-se, atirando-se da janela ou fazendo uso de uma arma?

O assunto é macabro, mas recorrente. De certa forma, somos todos terminais desde que nascemos, uns mais, outros menos. De minha parte, habituei-me a me considerar um sobrevivente, mais tarde um homem em estágio terminal.
 
Bem verdade que nunca pensei em suicídio, assistido ou não, mas costumo responder aos que me perguntam como estou revelando que "não passo desta noite" -uma frase que repito para mim mesmo todos os dias, o que me dá direito a aproveitar da melhor forma o dia seguinte- e faço isso há uns 20 anos e espero continuar fazendo enquanto puder.

Sei que a expectativa de vida vem aumentando, mas volta e meia, como no caso dos terremotos, desabamentos, desastres de carro ou avião, balas perdidas e homicídios em geral, de nada valem as perspectivas modernas que nos garantem uma vida mais longa.

De qualquer forma, a medicina e a tecnologia conjugadas não apenas aumentam as condições de vida como se esforçam para dar dignidade ao ato de morrer.

Sendo por natureza e definição um mortal, embora algumas pessoas me considerem imortal porque pertenço a uma academia cujo lema é "ad immortalitatem", tenho sérios motivos para me considerar um homem que termina todos os dias e instantes.

Quem acorda por mim no dia seguinte é um outro, apesar de herdar meus problemas, meus compromissos com a Receita Federal, amigos e desafetos, a batelada de exames e remédios e as chateações em geral que fazem parte da condição humana.
 
Pedindo perdão pelo assunto e pelo tom sinistro desta crônica, sabendo de antemão que receberei e-mails indignados de protesto e rejeição, busco a autoridade que não tenho em dois exemplos, um religioso, outro profano.

O primeiro é um conselho de Cristo anotado pelo evangelista Mateus: "Sufficit diei malitia sua" ("A cada dia bastam as suas atribulações"). O outro exemplo é o de Horácio, meu poeta preferido: "Aproveita o dia de hoje e nada espere do dia seguinte". Em latim, para dar mais solenidade: "Carpe diem quam minimum credula postero".

Folha de São Paulo, 4/11/2011