Luiz Paulo Conde andou passeando pela Galícia e trouxe na bagagem um livro sobre Allariz, pequenina cidade, próxima à fronteira com Portugal, uma região que como toda a península ibérica, sofreu (ou gozou) invasões romanas e árabes, além de abrigar os judeus sefaradistas que não a invadiram mas ali se fixaram após a diáspora.
Até aí, morreu néris. Quase todas as cidades da região conservam as mesmas influências. Mas o que chama a atenção em Allariz é a Festa do Boi, que nada tem a ver com a nossa doméstica e condenável Farra do Boi.
Desde 1317, quando o Brasil e a América nem existiam, ali se celebra uma festa com signos estranhos, que misturam motivos cristãos, árabes e anti-semitas, comuns naquela época, que promovia conversões em massa dos judeus que foram chamados de cristãos-novos.
Também nada de novo nesta prática que atravessou séculos tanto na Espanha como em Portugal. A novidade que Conde me trouxe foi a da festa do boi em si, onde há uma toada que é, sem tirar nem pôr, mas em dialeto galego, o bumba-meu-boi do folclore do nosso Norte e Nordeste.
São diversas estrofes numa língua bastante parecida com o português, entremeadas com o refrão "bumba-meu-boi-bumbá" repetido numa cadência que é a mesma do canto que conhecemos.
E aí vem o mistério, que não chega a ser mistério em si, mas que deixa espaço para especulações. Como uma canção cantada na Galícia em 1317, num contexto de mouros, cristãos e judeus, aclimatou-se no Norte e Nordeste do Brasil, tornando-se uma das festas mais populares da região?
Isso me faz pensar em Otto Maria Carpeaux, que descobria um só núcleo em todas as expressões da arte popular. Por caminhos estranhos e não sabidos, quando dança ou quando canta, o homem é um só. O resto são coisa inumanas, como a política, a economia e a geografia.
Jornal do Commercio - (Rio de Janeiro - RJ) em 15/01/2004