Deus é testemunha de que nunca tinha ouvido falar em Severino Cavalcanti, nem podia imaginar que ele existisse, tal como é, com seus defeitos, cantados e recantados pela mídia, e com suas qualidades, que certamente as tem. Swift dizia que até o Demônio tem qualidades, pois cultiva há séculos uma das virtudes teologais, a esperança de fazer nós todos piores do que já somos.
Surpreendido com a sua eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, continuo surpreendido pela reação da mídia, que está caindo em cima dele com uma ferocidade suspeita. Desencavaram o seu passado, que realmente não é dos mais edificantes, sendo o responsável pela expulsão de um padre italiano nos tempos da ditadura. Tem manias estranhas, a de guardar dinheiro vivo em seu colchão de pernambucano.
O tempo e o jornalismo investigativo que anda em moda certamente revelarão novos e escabrosos lances de sua biografia. Mas não poderão negar nem anular a limpidez de sua vitória na semana passada. Uma vitória dentro da regra do jogo, tão legítima quanto qualquer outra, na mesmíssima base do me dá isso que lhe dou aquilo -desde que mundo é mundo, política se faz nesta base.
Só não estou surpreendido, mas divertido, é com a grita do pessoal da mídia, que me parece insultada porque não previu aquilo que estão classificando de tsunami político: a vitória de um azarão do tamanho e do visual do Severino, contra os seus preferidos.
O mais gozado na mídia é que, apesar da apregoada isenção em tratar os atos e fatos da vida pública, apesar da objetividade que todos alardeiam, no subsolo da cobertura política correm desenfreados os preconceitos pessoais, desde os tapinhas nas costas, que revelam intimidade, até os telefonemas noturnos, que revelam outras coisas.
Folha de São Paulo (São Paulo) 21/02/2005