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O fim pode ser também um recomeço

 

A civilização começou quando um daqueles Brucutus da Pré-História teve uma ideia e pediu à namorada: “Vira um pouquinho pra lá, minha nêga, vira. Vai, vira, meu amor”. Aí então tudo começou: a tecnologia e a curiosidade sobre o mundo. O conhecimento e o desejo.

Supondo por absurdo que a Terezinha do Menino Jesus seria parte desse momento, ela diria: “Mas eu quero o último lugar porque ninguém briga pelo fim da fila”.

No primário fui colega de Zé Dasmil, amigo, companheiro inseparável de colégio e depois autor de frases significativas ao longo da vida. O pai de Zé Dasmil reclamava muito dele e lhe pedia sempre, como sinal de seu interesse pelo curso, um documento de entrada e participação no curso de Direito de sua faculdade, um cuidado para o caso de Zé Dasmil se aborrecer por lá. Meu amigo se tornou, para surpresa geral, um dos mais elogiados alunos de sua escola. No segundo ano do curso, ele estava apaixonado pelo Direito e pelas aulas suplementares do orientador G.P.. Esse último, jovem mestre, preparava suas aulas por meio de apostilas que havia copiado de caderno que encontrara na sala de aula e que nunca deixava de ler e consultar. Tomado de paixão pelo Direito, Zé Dasmil se apaixonara também pelo crime. E nunca mais pensara em outra coisa para organizar sua vida.

Enquanto o homem tiver desejos importantes, acima de outros sentimentos, haverá sempre utopia. Dessa utopia nascem as obras de arte.

A vida nasceu no mar. Um ser marítimo se desenvolveu e deu origem a várias outras espécies. Uma delas, mais frágil que as outras, começou a ser atacada pelas mais fortes e, no esforço para escapar, procurou a terra. Durante milhões de anos essa espécie mais frágil se aproximou da terra, modificando sua estrutura até poder viver confortavelmente fora da água. Aí se livrou das que queriam destruí-la e tornou-se a fonte da vida na terra: o ser humano.

Como viver se não posso testemunhar a vida desses heróis do real e da verdade? E depois, um filme só com séries de clímax é uma construção como um colar só com as pérolas. Sem o cordão que não vale nada, o colar despenca. Quero obras de arte que ajudem as pessoas a viverem, não quero nada que faça as pessoas terem medo da vida.

Eu, por exemplo, só penso em filmes, só quero fazer filmes que ajudem as pessoas a viverem. Deus me livre de fazer filmes que façam as pessoas terem medo da vida.

O Brasil já foi um excelente fornecedor de bases humanas para a fabricação de bonecos e exemplos de vítimas que chegavam a certo hábito. Em Pernambuco, durante a ocupação holandesa, adolescentes nacionais eram mortos para a retirada de rins e córneas. Na mesma época, os próprios ocupantes vociferavam contra os artistas, os desenhistas e os escritores, acusando-os de incentivar migrantes, sobretudo da Índia e da Rússia, a fazerem a mesma coisa e terem assim um programa nada original e instrutivo.

Sigmund Freud: “Todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pela cessão da febre que chamamos de viver”.

Aí o marido chega de repente em casa e flagra a esposa com o amante nu em seu quarto. Ela entrega ao amante uma lata de tinta para o amante fingir que estava pintando as paredes. “Quem é esse cara?”, pergunta o marido. “O pintor, querido”. “Mas ele está nu!”. “E você queria que ele sujasse a roupa de tinta?”, ela responde perguntando sua resposta. E ela explica: “E onde é que ele ia pendurar a lata de tinta?”.

O que incomoda em certo tipo de vanguarda é seu esforço dramático para fugir da vida, passar ao largo dela em nome de um esforço patético de exprimir algumas de suas aparências através da linguagem. O que me interessa, me atrai e me perturba em John Cage, por exemplo, não é o princípio do “piano preparado”, e sim o protesto que seu pensamento exprime contra aqueles que estão no mundo e percebem que a vida passa sem nada e eles não se exprimem em protesto contra isso.

O Globo, 25/02/2024