Por mais que a gente estude e preste atenção, é difícil adivinhar o que nos vai acontecer. Nem a ciência mais exata criada pelo homem é tão exata assim, há sempre a possibilidade de ela estar errada. Tentar saber por que, no passado, aconteceu de certo jeito, aí é bem mais viável. A gente se pergunta muito, por exemplo, por que o mundo está mudando tanto e numa direção tão inesperada.
Houve um momento recente, na história da humanidade, em que o planeta se dividiu em dois. E como as ideias e os projetos de um não tinham mesmo nada a ver com as ideias e os projetos do outro, os dois lados se prepararam para a extinção do seu contrário. Uma guerra fria que se dava “not with a bang, but with a whimper”, como em T.S. Eliot.
Líderes na guerra vitoriosa contra o nazifascismo e o império nipônico, Estados Unidos e União Soviética, as primeiras nações sem nome criadas pelo homem, propunham ao mundo dois mundos distintos, ambos notórios filhos da Revolução Francesa do século XVIII. Aquela revolução que o líder chinês, no final do século passado, dizia ser cedo para julgar.
Os Estados Unidos herdavam da revolução o tema da Liberdade, que desejavam absoluta, em todas as atividades humanas, inclusive e talvez sobretudo a econômica. A União Soviética privilegiava a Igualdade, numa modernização da sociedade primal em que os homens deviam ter todos exatamente o mesmo valor. Com tal diferença, a terceira palavra de ordem, a Fraternidade, ia naturalmente pro espaço.
Durante os 44 anos de Guerra Fria, da bomba atômica em Hiroshima à Queda do Muro de Berlim, os dois lados radicalizaram seus conceitos de bem e de mal, para poder garantir a importância de seu time de adeptos. Mesmo porque, a certa altura, um Terceiro Mundo parecia surgir no horizonte de pensadores de diferentes países, para atrair os que não se conformavam apenas com os dois lados.
Capitalistas e socialistas tiveram que ceder, adocicar seus radicais a fim de evitar a fuga atraída pela face mais humana do outro.
Tudo isso se acabou em 1989, com o fim da União Soviética, que desorganizou a dualidade entre o bem e o mal dos dois partidos. Assim como o socialismo se desmoralizara na prática de sua aplicação, o capitalismo não precisava mais inventar um rosto mais humano, capaz de garantir que a liberdade econômica absoluta não fosse apenas um pretexto para a simples e indefectível exploração do homem pelo homem.
Acho que foi essa esculhambação da dualidade já então clássica que pesou nos costumes que se modificavam, na criação dos populismos selvagens sem os quais o homem não tem como se explicar.
No próximo dia 4 de julho, vai estrear, em todo o Brasil, o documentário de longa-metragem “Neville d’Almeida — cronista da beleza e do caos”, de Mário Abbade. O filme, vencedor do Impact Docs Awards como melhor documentário internacional, estreou recentemente no Festival de Rotterdam, na Holanda, além de passar com muito sucesso pelo nosso É Tudo Verdade, um dos festivais do gênero mais reputado em todo o mundo.
Em “Neville d’Almeida — cronista da beleza e do caos” estamos diante da trajetória de um cineasta que, sendo um dos mais censurados da história de nosso cinema, ainda é um de seus campeões de bilheteria. Trechos de filmes como “A dama do lotação”, “Os sete gatinhos”, “Rio Babilônia”, “A frente fria que a chuva traz”, e outros, nos revelam um artista que muitas vezes não tivemos tempo, nem circunstâncias de época, para entender melhor.
Desde “Jardim de Guerra”, seu primeiro filme, de 1970, Neville d’Almeida tem sido um surpreendente cronista do que vai nos acontecer, antecipando modos de vida inesperados. Inspirado sempre em coquetel bem-humorado de sexo e política, de costumes e ideologia, de moda e miséria, ele nos perturba com a alegre acidez do que encena. Como se o fim do mundo não fosse nenhuma tragédia, precisamos apenas nos acostumar a ele. E sorrir diante do absurdo.