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O fascínio pelo tenebroso

 

Muito cedo, abri o computador e dei com o blog de Regina Paiva, jornalista, escritora, amiga de longo tempo, mas que não encontro há anos. Sempre nos víamos principalmente em estreias teatrais, ela foi crítica e uma grande entrevistadora, convivia com o Who’s Who teatral e cinematográfico inteiro. Comecei a ler a crônica daquela semana e de repente um pedaço dos anos 1970 saltou à minha frente. E aqui, juntos, Regina e eu fechamos esta crônica.

Ela escreveu: “Eu queria muito ser escritora, mas não tinha publicado nada. Escrevia contos e rasgava. Era jornalista, apenas. Um dia (1977) li a notícia de que o Unibanco estava lançando um concurso de contos. Vou nessa? Resolvi ir. O resultado viria em 1978. O júri era composto – nada mais, nada menos – por Antônio Houaiss, Lygia Fagundes Telles, Geraldo Galvão Ferraz, Otto Lara Resende, Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio e pelo diplomata e presidente do Unibanco Marcílio Marques Moreira. Cáspite! Pensei. Soube que estavam inscritos no concurso 13.306 contos e que seriam escolhidos apenas 10. 

Desanimei, mas mandei o conto. Continuei trabalhando, entrevistando, reportando, editando, nem pensei mais no concurso. Foi quando recebi um telefonema. Meu conto Álbum de Retratos estava classificado em 9.º lugar. Foi uma alegria enorme, imensa, tsunâmica! Comecei tarde. Eu já tinha 46 anos, quase a metade do que tenho hoje. No ano seguinte, publiquei meu primeiro livro de contos, Isso É Definitivo?, pela Melhoramentos. Fazia anos que não lia meu conto premiado. Queria material para o meu blog e, hoje, fui ler. Curioso: é quase uma premonição. Eu descrevia personagens de uma praia do Litoral Norte de São Paulo. (Todos existiram.) São mostrados com o ronco dos tratores que construíam a rodovia Rio-Santos servindo de música de fundo.

Ela viria. A estrada. O silêncio, a paz, a tranquilidade vigentes na região e no conto acabaram substituídos por algazarra, barulho, bagunça, drogas, leis desobedecidas, personagens bizarros. O progresso chegou com a Rio-Santos. Chegou desorganizado e cruel. Tanto, que vendi minha casa na região que adorava e vim embora para São Paulo. Meu conto Álbum de Retratos se situa naquela época distante, sem estrada e sem nada!"

Entro aqui. E então, eu, um daqueles jurados, me vi de volta àquele ano de 1977, em uma sala da presidência do Unibanco (depois Moreira Salles, depois Itaú) no Rio de Janeiro em um belo breakfast, que virou reunião e acabou em almoço. Gente da pesada, João Antônio e eu os mais mocinhos. Houaiss, enciclopédico. Otto, flechas viperinas certeiras. Lygia, mordaz ironia. Galvão Ferraz, judicioso, sardônico. Levamos um susto, havia 13.306 contos. Loucura! Como fazer? Marcílio decidiu que cada jurado receberia mensalmente um pacote, leria e discutiríamos no mês seguinte. Teríamos um salário mensal. Foi uma coisa profissional e bem paga. Até então inédita no País. Em geral nos convocam alegando que devemos fazer e nada cobrar em nome da cultura. Ou pagam cachês mínimos. As reuniões eram divertidas, porque o humor daquele grupo era alto. 

Tirei férias na Editora Três e fui com mulher e filhos para Saquarema, RJ. Eles tomavam sol, suco, comiam peixes fritos e camarões e eu lia, era conto a dar com pau. Os meses passavam, recebíamos nosso cachê, selecionávamos, trocávamos as histórias e saíamos de cada reunião com a consciência culpada. Vocês não imaginam a culpa que traz ser jurado literário. A coisa pesa. Quando chega a reta final, selecionando os bons, é uma tortura medieval. Terminado o júri, muitos vão direto ao terapeuta, com o qual gastam o cachê recebido.

De todas as reuniões, houve uma, quase no final, que ficou célebre. Anotei em minha cadernetinha. Lygia Fagundes Telles levantou uma questão: “Gostaria que me explicassem por que quanto pior o conto, medíocre, tolo, horroroso, sem pé nem cabeça, mais fico preso a ele. Sigo, obcecada até o final, muitas vezes releio a barbaridade. Acontece com algum de vocês?”.

Todos levantamos a mão. A mesma pergunta estava na ponta da língua de cada um. Nos entreolhamos e então Otto Lara Resende – célebre pelas frases antológicas – definiu: “Sim, acontece, com todos. Trata-se simplesmente do fascínio do ser humano pelo tenebroso”.

Houaiss acrescentou: “Ou pelo envilecimento, pelo flagicioso”.

Otto e Houaiss previram a existência de Bolsonaro.

PS: Otto, João Antônio, Houaiss, Galvão Ferraz (filho da mítica Pagu) já se foram. O conto de Regina Paiva é bom, atual. Acesse o blog

O Estado de S. Paulo, 28/08/2020