As primeiras cenas do filme Invictus, de Clint Eastwood, mostram o carro de Nelson Mandela, recém saído da prisão (por coincidência, há exatos 20 anos; e, outra simbólica coincidência, ele fora preso em 1964), passando entre dois campos de esporte.
No primeiro, precário, disputa-se uma partida de futebol, no outro, em frente, e em muito melhor condição, dois times jogam rúgbi, esporte nacional da África do Sul. Num dos campos, os jogadores são negros, no outro, brancos. Em que esporte predominavam os negros, em que esporte predominavam os brancos?
Para responder à pergunta é só olhar o Brasil. Aqui, nosso esporte é o futebol, que pode ser disputado em qualquer terreno baldio sem grande equipamento. Um esporte para pobres, para negros, portanto. Já o rúgbi também não exige grandes equipamentos, mas é um jogo brutal, em que o choque corporal é decisivo. Esporte para gente corpulenta, bem nutrida. No caso da África do Sul do apartheid, um jogo de brancos.
E aí Mandela é eleito presidente. Tratava-se de um líder perseguido, que havia passado quase três décadas na prisão, e que assumia o governo de um país em que boa parte da população negra mostrava-se ressentida contra a minoria branca. Podemos imaginar (e o filme mostra isso) o que os partidários de Mandela lhe diziam: vamos fazer essa gente provar do seu próprio veneno, vamos castigá-los pelo que nos fizeram.
Mandela poderia, até como vingança pessoal, ter aceito este posicionamento. Mas não foi o que fez. Decidiu que faria um governo de união, um governo capaz de superar todos os traumas e as violências do passado. E usou para isso um recurso aparentemente inesperado, mas lógico: o esporte.
Lógico porque, como sabe quem conhece a história recente do Brasil, vários governos (exemplo: Médici) se beneficiaram da conquista da Copa do Mundo. Mandela vai procurar o capitão do time nacional de rúgbi e faz com ele uma espécie de aliança, arriscada (o time sul-africano era um desastre), mas que resulta na inesperada conquista do campeonato mundial.
Notem que Mandela aí estabeleceu um modelo. Não é o modelo seguido por Chávez, por exemplo, como mostram os conflitos na Venezuela, mas é o modelo adotado por Lula. Aliás, os dois têm muito em comum.
Ambos vieram de camadas marginalizadas da população, ambos desafiaram governos e pagaram um preço por isso, no caso de Mandela, obviamente, bem mais elevado, e ambos optaram por governar para toda a população.
Mandela enfrentou uma tarefa muito mais difícil, porque ele assumiu logo depois da queda do regime racista, e, além disso, a África do Sul tem conflitos étnicos que não são pequenos, além de uma tremenda pobreza, em muitos aspectos pior que a do Brasil. Lula foi precedido pelo governo de FH, que lançou as bases de uma política econômica e social muito mais razoável.
O filme de Clint Eastwood não chega a ser uma obra-prima, mas cumpre uma função didática. Ele nos faz pensar sobre os problemas que enfrenta um governante, sobre a necessidade de colocar o bem-estar geral acima de eventuais divisões, por mais arraigadas que sejam. Mandela ganhou o seu campeonato, Lula de certa forma também: tem níveis de popularidade nunca antes vistos na história deste país. O rúgbi ensina bastante. O futebol, idem.
Zero Hora (RS), 9/2/2010