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O estranho caso do Dr. Kevorkian

 

Em Nova York, o anúncio estava em todos os lugares, nos ônibus, nos jornais, em cartazes: no último dia 24, sábado, ninguém deveria perder a estreia, na rede HBO, do filme You Don’t Know Jack (Você não conhece Jack), dirigido pelo consagrado Barry Levinson (Rain Man, Assédio Sexual, Bom dia, Vietnã) com Al Pacino (excelente) no papel do médico Jack Kevorkian, mais conhecido como “Dr. Morte”. O patologista Kevorkian ficou famoso na década de 90 por sua luta para que o suicídio assistido fosse direito de todo paciente. Ele próprio ajudou mais de 130 pessoas a morrerem, utilizando em muitos casos um equipamento por ele próprio criado e instalado, por incrível que pareça, numa velha Kombi. Foi preso e julgado várias vezes, sendo absolvido em todos os processos. Em 1999 foi a julgamento acusado da morte de Thomas Youk, portador de esclerose lateral amiotrófica, uma grave doença neurológica. Kevorkian documentou os últimos momentos de Youk em vídeo exibido pelo programa 60 Minutos, com imensa repercussão. Imediatamente denunciado por homicídio qualificado, defendeu-se pessoalmente, sem advogados. Não teve êxito: foi condenado a 25 anos de prisão, mas por sua idade avançada (está com 82 anos) teve direito a liberdade condicional a partir de 2007.




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Fiel ao título, o filme tenta mostrar uma outra face de Kevorkian, a sua face humana, por assim dizer. Nós o vemos ali terno, afetivo, preocupado com os pacientes terminais. Recusa-se a ajudar a morte de alguns, por exemplo, a de um jovem que claramente sofre mais de depressão do que de qualquer outra coisa. Entrevistado, Jack Kevorkian declarou-se satisfeito com a obra. Al Pacino (que no entanto não chegou a encontrá-lo) tem palavras de admiração em relação ao médico.


A verdade, porém, é que o filme não convence. Em sua obsessão, Kevorkian não deixa de ser uma figura estranha, o que fica evidente quando comparece ao tribunal usando roupas do século 18, para falar das raízes americanas. Trata-se de uma figura complexa, para dizer o mínimo, um solitário, mas com uma causa que defende apaixonadamente, sobretudo quando se dirige à mídia. A questão é realmente controversa: o código penal suiço, por exemplo, diz que o suicídio não é crime, e mesmo nos Estados Unidos, o Estado de Oregon tem uma lei que possibilita às pessoas lá residentes solicitarem auxílio médico para o suicídio terminal.


No Brasil, o Senado aprovou projeto de lei que torna lícita a ortotanásia, termo que define a morte natural, sem interferência da ciência, evitando-se métodos extraordinários de suporte à vida, como medicamentos e aparelhos, em pacientes irrecuperáveis. A nova versão do Código de Ética Médica, que entrou em vigor no último dia 13 de abril, também recomenda aos profissionais que evitem exames ou tratamentos desnecessários nos pacientes em estado terminal. Em vez de ações “inúteis ou obstinadas”, é aconselhada a adoção de cuidados paliativos, que reduzem o sofrimento do doente.


Não era bem o caso com o Dr. Kevorkian. Como diz o filme, nós não o conhecemos bem, e nem sabemos se ele se conhece bem. A pergunta é se pessoas assim estão em condições de decidir sobre a vida, ou a morte, de outras pessoas.


A Notícia (SC), 10/5/2010