O curador de resíduos marcara uma audiência coletiva, todos os herdeiros, com suas respectivas fêmeas, deveriam presenciar a assinatura de um termo, ele se atrasara em busca da certidão de casamento de um tio-avô morto havia tempos, correu pelas ruas para chegar à hora certa. Viu uma mulher caminhando na calçada oposta. Apesar da pressa e do cansaço, atravessou a rua e tentou acompanhar a mulher, lutando contra os transeuntes que o atropelavam. "Taí uma mulher gostosa! Com essa eu topava!" A mulher fazia o mesmo itinerário, e só quando chegou muito perto dela foi que a reconheceu: "Otávia!".
Ela parou surpreendida: "Ué? Você anda me seguindo?". "Estou indo para os resíduos. Que história é essa?" "Os resíduos?" "Não. Essa saia. Está muito apertada." "Engordei um pouco. A saia é antiga. Lembra-se?" "E esse cabelo?" "Vim cedo para a cidade, passei no cabeleireiro, ele deu um jeito, preciso cortar as pontas, está uma indecência."
Uma indecência. Parado na rua, ele percebeu que os homens passavam por sua mulher e deitavam olhos pulhas em cima das pernas dela. Um cara de óculos esbarrara num poste, olhando furiosamente para ela. Para sua mulher. A mulher dele.
E, durante a audiência, notou que um primo afastado, que não via há anos, não tirava os olhos de Otávia.
Naquela tarde, antes mesmo do jantar, mal chegaram em casa, ele arrastou-a para o quarto.
"Mas espera um pouco, estou pregada..." "Não. Quero você assim mesmo!"
A brutalidade com que a possuiu passou à história de sua vida íntima, da vida íntima dela. Um dia, Otávia insinuou qualquer coisa, recordou-lhe aquela vez, mas ele ficou envergonhado, desculpou-se de forma ridícula: "Esquece aquilo. Foi um equívoco!".
Folha de São Paulo (São Paulo) 26/06/2006