Superou toda clássica desconfiança do País de sempre o ganho logo em primeira votação da reforma tributária, menos de um mês após o sucesso na da Previdência. Vem em catadupa a afirmação do Governo Lula, saindo dos pessimismos crônicos, ou das sabedorias inerciais do excesso de prudência de novas presidências, que perderam o rompante do "que fazer" imediato, tal como aconteceu com FH.
Desde há uma década não se alteravam leis fundamentais, apontando ao sinal efetivo de uma ruptura do status quo, e do avanço da mudança nacional. O PT quer-se como agente, mais ambicioso ainda, da transformação coletiva. Já quebramos a mesmice nacional e o conformismo fatalizante com tudo que está aí. Na velha visão, dita esperta, só nos cabe a dose homeopática do progressismo neoliberal, a só melhorar com o tranco de fora, de recursos ou dos humores do mercado-rei.
Não se fale, ainda, da aceleração que pede Lula. Mas o fio da vontade desembainhada talha um corte do antes e depois, malvencido um semestre do petismo no poder. Ou melhor, de uma frente política que sabe amarrar os seus aliados e, sobretudo, reforçar-se a cada chamada de votos, diante da oposição ainda desorientada na firmeza de seus quóruns e no a que, afinal, pretenda. Os clássicos partidos da clientela, PMDB e PFL, e a que se adiciona, hoje, a promessa do sal da mudança efetiva do PSDB, continuam sabiamente rachados.
Na reforma da Previdência e aquecendo a trincheira da resistência ao regime, o PFL só trouxe ao "não" 36 votos contra 33, puxados ao rosário do sim. E em quebra idêntica, o PSDB ficou no exatíssimo fiel da balança, entre 29 a favor e 28, marcando a oposição a Lula. Prestes, de vez, a entrar com matrícula definitiva no redil de Lula, o PMDB juntou 45 vozes, deixando ao relento do não, 18 deputados.
A primeira votação da reforma tributária mostrou que é cada vez mais precário o pendão de luta que arvore o PFL contra o Governo. Cautela e caldo de galinha nunca fazem falta, e preferiu o partido tirar de campo 51 deputados sobre os 69 do seu contingente. Deu ainda de cortesia a Lula, 15 de seus parlamentares. Na vocação do simetrismo absoluto que pede o topo do muro, o PSDB rachou-se entre 24 "sins" e 26 "nãos". E já mostrando uma extraordinária disciplina de voto - ao contrário de seus colegas de possível oposição, o PMDB engrossou o "pró" com 70 dos seus 77 legisladores. Lustrosa e impecável adesão de quem já ganhou matrícula e paga certa daqui por diante, ministérios no bolso, para somar-se em nova militância ao Brasil das reformas. E que ganha o arranco do desenvolvimento no pacto fiscal, vezeiro no mais sutil dos xadrezes, em mudar-se as peças para acabar-se, praticamente, no mesmo lugar e, no caso, como veneno em cauda, letal para um partido como o PT.
Por força a segunda rodada pode ter um balanço de ajuste. Mas os ganhos definitivos vão ao avanço da racionalidade geral da operação da máquina, saindo dos travames clássicos em que o imobilismo é a "segunda natureza" do perdurar de uma situação semicolonial do País que não desatraca de vez para a transformação.
Eliminou-se o clássico vício do excesso de rubricas, da malha sobre a malha, da captura de recursos - rente, sempre, a seu escape - que levava os estados a poder negociar com 44 alíquotas - agora reduzidas a 5 - no assento do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços. Ou seja, da nossa principal fonte de arrecadação, nos 100 bilhões com que enche anualmente os cofres públicos. Desemperra-se o excesso de tributos como a verdadeira alavanca que quebra a desburocratização nacional, bem como a luta contra os mil desvãos abertos à corrupção e sonegação, típicas da semi-impunidade reclamada ainda para o País dos privilégios e das fraudes silenciosa.
A União consolida os seus recursos ameaçados, prorrogando a CPMF até 2007 e soltando-se da vinculação dos 20% do Imposto de Renda à educação e saúde, para trocá-los por dinheiros novos e firmes. Sobretudo, ganhou o País, salientou o Ministro Palocci, o capital intangível da nova disciplina, firmado o teto tributário, ao início de mandato de um Governo que vem ao que diz. Foi direto ao bom sangradouro de recursos, criando o progressivo sobre as heranças, e afiando o ferrão sobre o sultanato econômico dos bancos e seus lucros de Sherazade. Impôs-lhes a maior alíquota das contribuições sociais sobre o lucro líquido (CCLL).
No arreglo permanente do pacto substantivo da federação, no ganha e perde entre Brasília e os estados, ficou-se na bela álgebra compensatória para ninguém estrilar. O rearreglo é geral e, mais ainda, no que venha agora por novos fundos aos estados, poderão estes gastá-los como lhes aprouver. Desaperto mesmo vem aos municípios, mais do que saudado em ano pré-eleitoral, permitindo ao Imposto Territorial Rural cobrir as obras do visual satisfeito dos munícipes, nos serviços de limpeza dos logradouros públicos, e o repasse aos consumidores dos gastos com iluminação pública.
O Fisco passa agora a abocanhar 33% do PIB, cifra que nos aparta da mordida dos subdesenvolvidos estagnados nos 25%, ganhando porte das economias envelhecidas do Ocidente europeu, como as escandinavas. Só que lá o erário construiu um Estado-serviço, voltado ao efetivo bem-estar social, enquanto aqui continuamos socialistas na tunga, e neoliberais, no modelo econômico que Lula encontrou em Palácio.
Não escapamos, ainda, a uma plataforma tributária basicamente perversa, que continua assentada na produção e no consumo e não nos lucros. É o que termina no massacre dos repasses, e aí, numa isonomia injustíssima do peso do tributo embutido no orçamento dos ricos e pobres. O importante não é, entretanto, no resultado deste 4 de setembro, chorar-se o que ainda não se logrou. Mas do que tornou inarredável o caminho aberto, e o capital político, para passar da mudança à transformação. A vitória, agora em salto duplo, desarvora paleodescrentes e neocéticos.
Jornal do Commercio (RJ) 12/9/2003