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O direito de mostrar o rosto

 

Na próxima semana, estarei na Flip, a já lendária Festa Literária de Paraty, onde participarei em várias atividades, uma das quais aguardo com muito interesse. Coordenarei um painel em que participam dois escritores famosos, o israelense A. Yeoshua e a iraniana (exilada) Azar Nafisi. Se tivesse nascido no Brasil, Azar poderia dizer que seu nome condicionou um destino; de fato, não foram poucas as atribulações pelas quais passou. Filha de um casal conhecido no Irã (o pai foi prefeito de Teerã, a mãe, deputada), Nafisi estudou na Inglaterra e graduou-se em letras na Universidade de Oklahoma. Quando os fundamentalistas tomaram o poder no Irã, começaram seus problemas: recusando-se a usar o véu, ela foi proibida de lecionar na Universidade de Teerã e acabou emigrando para os Estados Unidos. Sua história está em dois livros, o best-seller Lendo Lolita em Teerã e O Que Eu não Contei.


Na briga que envolve o fundamentalismo, o véu é o cavalo de batalha, por causa de sua visibilidade e pelo contraste que representa em relação aos costumes ocidentais. Os homens também precisam manifestar sua opção religiosa através de sinais externos: não usam gravata, deixam crescer a barba, o que aliás é uma tradição antiga no Oriente Médio, onde a face glabra de gregos e romanos era vista como coisa obscena; a barba também foi adotada pelos revolucionários cubanos como símbolo. Barba não chega a ser coisa insólita, e tampouco as formas, digamos, mais moderadas de véu; mas o nicab, que cobre o rosto, deixando descobertos apenas os olhos, e a burca, que até os olhos oculta mediante uma tela quadriculada, realmente chamam a atenção e não raro despertam hostilidade. Não é de estranhar que a Assembleia Nacional francesa tenha aprovado (335 votos a favor, um contra) projeto de lei proibindo o uso do véu islâmico na sua forma integral nas ruas e em locais públicos. A pena é de multa, relativamente pequena para a mulher que usa o véu, e muito alta para quem obriga a mulher a usar o véu.


A medida está dentro da tradição laica e liberal da França, mas mesmo assim provocou polêmica. Em primeiro lugar porque são relativamente poucas (menos de duas mil) as mulheres que usam nicab e burca. Depois, porque a medida, ainda que tenha fundamento lógico, pode provocar um efeito paradoxal. É possível que, forçadas a escolher entre sua religião e as leis do país, as mulheres muçulmanas se apeguem ao véu como forma de desafio, aumentando ainda mais o conflito que já existe entre os 5 milhões de muçulmanos que vivem na França e a população em geral.


Nesse caso, e em outros semelhantes, é melhor recorrer ao bom senso. O islamismo não é um todo monolítico; existem dentro dele várias correntes, desde as mais fanáticas, até as mais moderadas. E estas últimas são a favor de uma convivência, mesmo porque o processo de modernização tem muitos adeptos no Oriente Médio, isto apesar do conceito de "choque das civilizações", popularizado pelo cientista político americano Samuel Huntington e reforçado pelo atentado de 11 de setembro. Seria bom que o movimento contra o véu partisse das próprias mulheres muçulmanas, como parte de um processo de igualdade e liberação. Afinal, mostrar a própria face é um direito de todos os seres humanos. Um direito que fanatismo algum pode abolir.


Agradeço as mensagens de Mara Paulina Arruda, Flavio da Rosa, J. C. David, Percio de Moraes Branco, Alberto Oliveira, Maria N. Coch, Marcel Furlan, Roberto Fonseca Dalbem, Luiz Couto, Patricia Bins Ely, Dirceu de Castro (presidente do E.C.Cruzeiro que agora completa 97 anos), Rafael Granella, Nora Peixoto, Renato Lampert. A Nana Bernardes compôs uma bela canção em minha homenagem. Não sei se o que escrevi ficará, Nana, mas a tua música certamente permanecerá.


Zero Hora (RS), 25/7/2010