Judeu e usura são ambas palavras dc cinco letras. Judcu c usura contam com a melancólica vogal “u” em dose dupla. Mas judeu e usura t^m mais em comum do que essas coincidências. Têm, em comum, uma longa história. E têm, em comum, o estigma. A partir de certo momento, judeu e usura passaram a ser automaticamente associados.
Na Antigüidade, os hebreus eram um povo semelhante a tantos outros do Oriente Médio, um povo de pastores e de agricultores. Com a dispersão, esse perfil socioeconômico se diversificou: os judeus eram escravos, mas também eram médicos; eram negociantes, mas também exerciam profissões intelectuais. A usura não fazia parte de suas atividades; na verdade, era expressamente proibida pelo “Talmud”, a coletânea de textos que servia de código moral para as comunidades judaicas. A mudança ocorreu no final da Idade Média. O regime então vigente na Europa era o feudalismo, baseado no trabalho agrícola dos servos que tinham de entregar ao senhor feudal, proprietário das terras, uma parte importante da colheita. Nesse sistema, o dinheiro tinha escasso papel. Mas o senhor feudal precisava comprar armas, precisava adquirir bens luxuosos, precisava financiar expedições guerreiras. Quem forneceria o dinheiro para tal, e em que condições?
A solução bolada foi simplesmente genial. A acumulação e o empréstimo de dinheiro, proibidos aos cristãos, foram confiados a um grupo social marginalizado: os judeus. Isso matava (não raro literalmente) vários coelhos de uma cajadada. Em primeiro lugar evitava-se a transgressão religiosa: mais que isso, se o senhor feudal não podia ou não queria pagar o empréstimo, tudo o que tinha a fazer era promover um massacre de judeus, uma legítima queima de arquivo. O usuário, por sua vez, compensava os riscos com os juros. Que não chegavam aos níveis daqueles que até recentemente eram praticados no Brasil, mas eram mesmo assim bastante altos. Nasce aquela figura caricatural que inspirou Shakespeare em “O Mercador de Veneza”, Shylock é o protótipo do prestamista, um tipo absolutamente abominável, o que tem levado muita gente a rotular a peça como anti-semita. Certamente Shakespeare partilhava os preconceitos de sua época; mas “O Mercador de Veneza” apresenta situações inesperadas. Shylock exige como garantia de um empréstimo uma libra da própria carne do devedor. O que, convenhamos, é um penhor no mínimo estranho para quem não praticava a antropofagia; seria de esperar uma garantia mais comercial. Essa exigência traduz, contudo, o ressentimento de Shylock, ressentimento que aliás se expressa no discurso que ele lá pelas tantas faz: sou judeu e sou humano, ele brada, e pergunta: não têm os judeus afetos, paixões, não são vulneráveis aos mesmos agravos que os cristãos, não são vítimas das mesmas doenças, não sentem frio ou calor? “Se vocês nos esperam, nós não sangramos?” Sangrar é importante; Shylock quer que, sangrando, o devedor lembre que os judeus também têm sangue, que também sofrem, também tem sentimentos. Ironicamente, esse detalhe acaba frustrando o desejo de vingança de Shylock: no julgamento, ele é derrotado pelo argumento de que a lei proíbe aos judeus derramar o sangue de cristãos.
Ao fim da Idade Média um novo regime começa a surgir, o capitalismo, que de início é o capitalismo mercantil, baseado na compra e venda de mercadorias. Compra e venda exige dinheiro, e o dinheiro já não é encarado como coisa pecaminosa, desprezível. Cristãos começam a emprestá-Io, criando uma nova realidade que a Igreja aos poucos vai aceitando. Por fim surge o banco e então a atividade fica institucionalizada. Mais do que isso, fica dignificada. Até recentemente os bancos eram estabelecimentos imponentes; exemplo disso é o antigo Banco da Província, em Porto Alegre. Um edifício construído em granito, com altas colunas, vitrais, teto esplendidamente decorado com vitrais alusivos a atividades econômicas. Um verdadeiro templo do dinheiro, portanto. E o banqueiro não é o usurário, não é aquele figura desprezível de nariz adunco, dedos em garra e olhar desconfiado. Não, o banqueiro é um próspero empresário, um homem que convive com a aristocracia, com os políticos, com os governantes, aos quais inclusive financia. Alguns judeus, e os Rotschild disso são exemplo, se tornam banqueiros, mas a atividade já não é característica de nenhum grupo étnico ou religioso em especial. O banco é um produto globalizado, como globalizada é a modernidade.
Mas estigmas resistem ao tempo. Estigmas são difíceis de erradicar; sobretudo porque se constituem em uma forma de expressar agressividade inerente à condição humana. Os judeus continuam a ser rotulados como usuários, como avarentos, como detentores de riqueza, mesmo quando vivem uma existência miserável, o que aconteceu no império czarista. Confinados em suas pobres aldeias, exercendo profissões humildes (artesãos, lavradores, pequenos comerciantes) os judeus viviam sob a ameaça das perseguições e dos massacres, já que eram a válvula de escape para as tensões sociais de um país polarizado entre a riqueza e a miséria. Emigrar era a única forma de escapar dessa desesperadora situação e, aos milhões, eles vieram para a América. Aqui o estigma se atenuou, mas não desapareceu, como nós, os filhos dos emigrantes, podíamos constatar; através das piadas de mau gosto que, quiséssemos ou não, mexiam conosco. Garoto, eu tinha pavor de ser rotulado como avarento; no bar que eu freqüentava com meus colegas de escola, não-judeus em geral, eu fazia questão de pagas as despesas com sanduíches e refrigerantes, para surpresa deles, aliás, e desgosto de meus pais que constantemente tinham de aumentar minha mesada. A culpa ancestral que carregávamos também nos impediu, a mim e a meus amigos judeus, para a militância política. Nosso projeto era a criação de uma nova sociedade, em que judeus e não-judeus seriam iguais e em que o dinheiro já não teria importância nenhuma. Um sonho que não deu certo e que acabou nos levando para o divã do psicanalista, onde descobríamos que, de acordo com Freud, o dinheiro tem uma dimensão simbólica, e era esta que nos fazia sofrer.
A vida acabou nos ensinando que o dinheiro não pode ser nem desprezado nem valorizado demais. Final feliz para uma longa história de sofrimento? Não, não é nem o final, nem este final é feliz. Mas já é um bom avanço.
Folha de S. Paulo (SP) 8/10/2007