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O dilúvio e a pomba

 

O ano terminou bem, como se espera das coisas que acabam. Respeito os mortos e feridos pela onda que surgiu das profundezas e devastou ilhas e terras. Se dependesse de mim, não teria havido a tragédia, a do tsunami e as outras que andaram por aí e seguramente vão andar no próximo ano.


Sempre me contaram que no último dia do ano, à meia-noite em ponto, nas diversas horas locais do mundo, aparece no céu um velho encarquilhado, calvo, nariz adunco, pernas trôpegas, um saco nas costas arqueadas, saco cheio de tragédias, doenças, esperanças mortas ou adiadas.


E como não aprendemos nada do que a vida nos ensina, logo após o velho sinistro surge uma criança gorducha, sorrindo de alguma coisa que não se percebe, em vez da fralda necessária uma faixa igualmente necessária, anunciando o ano que entra -e tudo leva a crer que vai entrar bem mesmo.


Nunca vi no céu essa mudança de guarda, uma lenda que era comum na minha infância. Se visse, ficaria espantado, em tão pouco tempo a criança gorducha se transformar no velho imprestável que ruma para o nada com suas desditas e escombros.


Mesmo assim, todos os anos, que já são bastantes para ter aprendido alguma coisa, dou uma espiada no céu para ver se alguma coisa acontece. Aqui na Lagoa soltam fogos, que parecem os mesmos do ano anterior. Até agora, pelo menos, não apareceu nenhuma onda gigantesca que castigue nossas iniqüidades. No tempo de Noé e de sua arca, precisou chover 40 dias e 40 noites para se obter um resultado quase igual. Hoje as coisas são instantâneas e com produto final parecido.


Este ano não deu tempo. Mas, alertado pela tragédia na Ásia, providenciarei uma pomba e esperarei aqui mesmo, na varanda da Lagoa. Se sobreviver, soltarei a pomba e esperarei que ela traga o ramo de oliveira anunciando que as águas baixaram. E é tempo de tentar uma aliança com Deus e com nós mesmos.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 01/01/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 01/01/2005