RIO DE JANEIRO - Naquela aldeia, todos roubavam de todos, matava-se, fornicava-se, jurava-se em falso, todos caluniavam todos. Horrorizado com os baixos costumes, o frade da aldeia resolveu dar o fora, pegou as sandálias, o bordão e se mandou.
Pouco adiante, já fora dos muros da aldeia, encontrou o Diabo encostado numa árvore, chapéu de palha cobrindo seus chifres. Tomava água de coco por um canudinho, na maior sombra e água fresca desde que se revoltara contra o Senhor, no início dos tempos.
O frade ficou admirado:
"O que está fazendo aí, nessa boa vida? Eu sempre pensei que você estaria lá na aldeia, infernizando a vida dos outros. Tudo de ruim que anda por lá era obra sua, assim eu pensava até agora. Vejo que estava enganado. Você não quer nada com o trabalho. Além de Diabo, você é um vagabundo!".
Sem pressa, acabando de tomar o seu coco pelo canudinho, o Diabo olhou para o frade com pena:
"Para quê? Eu trabalho desde o início dos tempos para desgraçar os homens e confesso que ando cansado. Mas não tinha outro jeito. Obrigação é obrigação, sempre procurei dar conta do recado. Mas agora, lá na aldeia, o pessoal resolveu se politizar. É partido pra lá, partido pra cá, todos têm razão, denúncias, inquéritos, invocam a ética, a transparência, é um pega-pra-capar generalizado. Eu estava sobrando, não precisavam mais de mim para serem o que são, viverem no inferno em que vivem".
Jogou o coco fora e botou um charuto na boca. Não precisou de fósforo, bastou dar uma baforada e de suas entranhas saiu o fogo que acendeu o charuto:
"Quando entra a política, eu dou o fora, não precisam mais de mim". (Este texto foi publicado na Folha Online anos atrás. Reproduzo-o pela sua atualidade).
Folha de S. Paulo (SP) 21/2/2008