Estávamos em maio de 1960. JK inaugurara Brasília um mês antes, no dia 21. E, no firmamento brasileiro, só uma estrela brilhava, que era a sua.
Aí os líderes janistas articularam uma viagem de Jânio a Cuba, já sob o governo de Fidel, para ressuscitar sua candidatura, então esvaziada. Num Super-Constellation, fretado à Varig e pilotado pelo Comandante Antônio Schittini, saímos daqui do Rio para Havana, com um perigoso pouso em Fortaleza: Adauto Cardoso, Afonso Arinos, Castilho Cabral, Augusto Marzagão, José Aparecido de Oliveira, Carlos Castello Branco, Villas-Bôas Corrêa, Fernando Sabino, Marcio Moreira Alves, Helio Fernandes, Amaral Neto, Paulo de Tarso, João Dantas, Moniz Bandeira, Rubem Braga, Seixas Dória, Julião, Carlão Mesquita, Jânio, D.Eloá, Tutu e eu.
A bordo, bebeu-se tanto uísque que um dos companheiros desceu em Havana em coma alcoólico, recuperando-se depois num hospital.
Fidel nos esperava no aeroporto, com um conjunto de mariachis e suas rumbas. E nos explicou, quando entramos no Hotel Habana Riviera:
- Confisquei-o. Pertencia ao mafioso Meyer Lanski, que devia muito dinheiro ao povo de Cuba.
Ali ficamos uma semana, durante a qual um grupo de companheiros, inclusive eu, fizemos uma extenuante viagem de três dias a Sierra Maestra, onde começara a revolução contra Fulgencio Batista e onde nos contaram comoventes histórias sobre o heroísmo dos revolucionários.
Na véspera da nossa volta de Havana, o Embaixador Vasco Leitão da Cunha ofereceu-nos uma recepção na Embaixada brasileira. Fidel, que descera de Sierra Maestra para ir a essa recepção, deu por falta do seu revólver, surrupiado de cima de um móvel no qual o deixara.
Esse revólver, com cabo de madrepérola, era de muita estimação para Fidel. Fora-lhe presenteado pelo ministro soviético Anastas Mikoyan, mas se viu "transferido" para as mãos de um brasileiro colecionador de souvenires. Eu sei quem foi ele, porque o vi esconder a arma na cintura, embaixo do paletó. Mas, se enquanto viveu, jamais revelei o seu nome, muito menos o revelaria agora, quando ele já está morto.
A segurança fez uma rigorosa varredura nas dependências da embaixada, mas encontrou apenas a cartucheira. O revólver não. Fidel não disfarçou seu desgosto por aquele sumiço e passou a narrar a Jânio a seguinte história:
- Nós queríamos nacionalizar uma empresa ou um banco americano e o Dr. Manuel Urrutia, que nós havíamos empossado na Presidência, era contra. O senhor sabe o que eu fiz, Dr. Jânio? Eu renunciei ao meu posto de primeiro-ministro. Quando o povo soube da minha renúncia, veio para esta praça, aqui em frente, e acampou três dias e noites, exigindo a minha volta. Eu então voltei ao meu cargo, demiti o Dr. Urrutia, mandei-o para Miami e o substituí pelo Dr. Oswaldo Dorticós.
Assistiram a essa conversa, do começo ao fim: Raul Roa, Che Guevara (aspirando uma bomba de asmático), Raul Castro e Dorticós, do lado cubano. E Adauto Cardoso, Afonso Arinos, Castilho Cabral, Amaral Neto e eu, do lado brasileiro.
Na viagem de volta, com uma escala em Caracas, para visitar Rômulo Gallegos, e sentado lá atrás, no último banco do avião, Jânio me chamou para a cadeira ao lado, rodando uma dose de uísque puro entre as mãos, e perguntou:
- Você ouviu, Murilo, o que o primeiro-ministro Fidel Castro contou? Ele renunciou e o povo veio para a rua exigir a sua volta.
Eu tenho hoje absoluta convicção de que aquele episódio narrado por Fidel em Havana ficou na cabeça de Jânio e contribuiu muito para que ele, um ano e três meses depois, renunciasse à Presidência da República, naquele dia 25 de agosto de 1960, portanto, há 46 anos, que se completam justamente depois de amanhã.
Tanto assim é que, já tendo renunciado e ao chegar a Cumbica, ido de Brasília, recebido no aeroporto pelos governadores Magalhães Pinto, Carvalho Pinto, Ney Braga e Aluizio Alves, Jânio perguntava dentro do avião, em altos brados:
- E o povo? Onde está o povo que não veio me buscar?
Esta é a minha tese para o dia
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 23/08/2006