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O desafio nacional

 

As raízes da carência de leitura no Brasil são profundas. Basta relembrarmos que somente em

1808 a tipografia (excetuando um episódio atípico e sem maior expressão) apareceu entre nós. Como tantas outras marcas de civilização que só se implantaram no território nacional com a viagem da família real portuguesa — uma das grandes efemérides que serão comemoradas daqui a dois anos, junto com o centenário da morte de Machado de Assis e o do nascimento de Guimarães Rosa — o livro no Brasil, assim como os periódicos, tem apenas 198 anos de idade, o equivalente aproximado de seis gerações, o que representa para nós um notável atraso de partida em relação à América Hispânica e aos Estados Unidos. Após três séculos como colônia de extração e como mercado consumidor da metrópole, o Brasil adentrou subitamente a contemporaneidade pelo único motivo da transferência da sede do Império Português para o Rio de Janeiro. Em outras palavras: devemos o surgimento do livro em nosso país a Napoleão.

 

O índice ainda muito alto de analfabetismo, e sobretudo de analfabetismo funcional entre nós, é uma das mais dramáticas dificuldades para o desenvolvimento nacional. Se parte da população das áreas rurais ainda conserva uma cultura tradicional de grande valor — cultura basicamente oral, ágrafa, mas na qual se conserva uma das bases da nacionalidade —, se boa parte da população urbana atingiu um nível satisfatório de cultura formal, existe, inegavelmente, uma volumosa parcela do povo que se encontra numa espécie de limbo entre as duas situações, especialmente a que se concentra na periferia das grandes cidades. Havendo de todo perdido o tesouro ancestral da cultura tradicional, não chegando à mínima aquisição de uma cultura formal, essa porção abandonada e despossuída vem a consistir, implacavelmente, na massa acrítica que maiores dificuldades apresenta para eficaz incorporação à vida produtiva nacional.

 

Por seu lado, nunca o mercado editorial brasileiro, paradoxalmente, apresentou tal pujança e tão rica oferta de títulos. Nossas tiragens, no entanto — excetuando os casos evidentes de best-sellers, livros didáticos ou obras de grande apelo popular —, são comparáveis a de países como Portugal ou Grécia. Ou seja, somos um país de 180 milhões de habitantes com tiragens médias próximas a de países com 10 milhões, o que explica o alto preço dos livros. Se a informática representou uma das mais espantosas revoluções no acesso à cultura, a verdade é que, agora e sempre, das tabelas de argila da Assíria até as maravilhas gráficas do nosso tempo, tudo começa pelo livro. Sem o manuseio direto, a prática amorosa e constante, quase sempre começada na infância, com esse objeto, todas as formas de vulgarização resultam nulas.

 

O grande desafio nacional, para alterar a situação presente, seria o estabelecimento de uma disseminada rede de bibliotecas – uma por município – já que o espírito sopra onde e quando quer, e onde houver um único brasileiro com sede de leitura, deveria o Estado ter como saciá-lo, pelo menos em relação às obras fundamentais. Da mesma maneira as bibliotecas escolares são fator de importância inapreciável por não trazerem ao jovem leitor o ônus de um deslocamento, para além de seus hábitos obrigatórios. E quando falamos de bibliotecas não nos referimos a depósitos de livros em péssimo estado, obsoletos ou inservíveis.

 

Muitas bibliotecas comunitárias no Brasil são em boa parte meros depósitos de livros, oriundos de doações domésticas para abrir espaço, não de uma política séria de divulgação da leitura. A parte majoritária de tudo que se imprime no mundo, desde Gutenberg, tem, infelizmente, pouquíssima relação com a cultura, embora o simples ato de ler seja o exercício primordial e indispensável para a sua aquisição. É preciso levar a cada localidade nacional as obras incontornáveis da alma e do pensamento do Brasil e do mundo, através de política sem solução de continuidade, sem dependências dos ocupantes do poder.

 

Correio Braziliense (DF) 15/6/2006

Correio Braziliense, 15/06/2006