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O delito maior

 

E lá se vai o Mandetta embora. Numa hora em que mais de 2 milhões de pessoas, no mundo inteiro, estão infectadas pela Covid-19, e por volta de 150 mil já morreram. Numa hora em que precisamos nos livrar da peste planetária, o ministro foi vítima de suas virtudes. Como a defesa intransigente do distanciamento social, um dos motivos pelo qual, neste momento, se tornou o homem público mais amado do Brasil (76% de aprovação popular). Na quinta-feira passada, dia de sua demissão, três discursos nos contaram o que estava acontecendo.

No primeiro depoimento, um ministro, virtualmente demitido há muito tempo, sorria glorioso, satisfeito com tudo o que propusera, inclusive a política que havia provocado a sua demissão. Esperei ouvir, a qualquer momento, o célebre pensamento do padre Antonio Vieira, que entendia dessas coisas: “Nessa terra, não há delito maior do que ser o melhor”. Mandetta convocava seus auxiliares, sobretudo os mais fiéis, a cooperarem entusiasticamente com o nomeado, os incentivava a colaborar com o novo ministro. No outro, o novo ministro improvisava uma fala técnica, um pouco convencional, justificável pelo pouco prazo da decisão. Nelson Teich expôs um programa muito pouco dessemelhante ao do exonerado. E completava com uma declaração de “alinhamento” que, por contraste com o que dissera, só podia ser para acalmar o ego excitado do chefe.

Entre os dois depoimentos, estava a figura principal do espetáculo, o protagonista do drama em cena, o nosso presidente Jair Bolsonaro. Todo mundo tem o direito (e até mesmo o dever) de procurar ser reconhecido pelos outros. Essa obsessão pelo sucesso pessoal não é necessariamente um sinal de psicopatia. Pelo contrário, ela pode até ser considerada uma característica natural do ser humano, que precisa ser domada para que ele possa viver em sociedade, outra característica natural do ser humano. O limite dessa obsessão é o reconhecimento do lugar do outro. Isso, porém, não estava no discurso lento e sem entusiasmo de Bolsonaro, como se estivesse dopado pelas circunstâncias, apesar do tratamento respeitoso com o demitido.

Para Bolsonaro, o debate não é nunca o esclarecimento entre duas ou mais afirmações distintas e opostas em conflito, mas a imposição de um poder sobre outro. De preferência, do mais forte sobre o mais fraco. E o mais forte, para ser o mais forte, tem sempre que sair vitorioso. Essa é a sua regra do jogo.

O que impressiona no ego de Bolsonaro é a sua capacidade de fazer o que lhe é visivelmente desagradável, para poder prejudicar aqueles que o incomodam. Se Mandetta tem enorme popularidade por sua política de saúde, é preciso então fazer o contrário do que ele sugere fazer. Mesmo que seja apenas para implicar com ordenamentos que não tenham sido promulgados por ele. Não conheço o presidente pessoalmente e sei que Bolsonaro jamais me daria um depoimento sobre o assunto. Acho que a ninguém. Mas não vejo nele, em seu rosto ou nas suas mãos, em seu corpo nervoso ou em seus sorrisos forçados, em seus diversos tiques faciais ou no que for, nenhum prazer em abraçar, dar a mão, beijar a testa de quem quer que seja, homem ou mulher, jovem ou idoso, gente bonita ou feia, quando o presidente sai às ruas para provocar aglomerações. Vejo, em seu comportamento, muito mais um recado de sacrifício aos correligionários, do que de algum prazer. Às vezes, quando assisto àquelas cenas na televisão, corro até o perigo de sentir pena do coitado.

Os delírios de Bolsonaro são sempre mais ricos quando se tornam limítrofes. Depois de uma tentativa de sobretaxar a crescente energia solar no país, Bolsonaro, no dia 7 de janeiro deste ano, em encontro com jornalistas (classe de gente que ele ama, mesmo que fale tão mal), quando perguntado pelo assunto, olhou para cima e disse: “Sol, fique tranquilo, não serás taxado”. O jornalista Elio Gaspari, no dia seguinte, publicou um artigo em que dizia: “O reino das trevas quis taxar o sol”.

Os amigos e colaboradores do presidente devem participar intensamente da construção de sua personalidade. No ano passado, em cerimônia no Ministério das Relações Exteriores, o chanceler Ernesto Araújo, de estrita confiança sua e de seus três filhos, comparou-o, com os olhos marejados, a Jesus Cristo. Há quem garanta que Bolsonaro também verteu algumas tantas lágrimas de emoção.

O Globo, 20/04/2020