O clamor que o rapto das meninas nigerianas despertou no Ocidente — uma cúpula de chefes de Estado se reuniu em Paris — é o único consolo frente a um ato vil que, por seus requintes de crueldade, nos devolve, como espécie, ao mundo das feras. As autoridades e os grupos de mulheres que protestam exigindo uma ação imediata de resgate estão dizendo uma coisa simples: o que aconteceu naquela escola nos faz a todos menos humanos. O silêncio e a indiferença são cúmplices. Queremos as meninas de volta.
O governo de um certo Goodluck — má sorte para as meninas — não agiu a tempo de impedir o sequestro apesar de ter sido avisado do risco e, quando pressionado pelos países do Ocidente, não foi capaz de articular uma ação efetiva que as salvasse. Logo um brutamonte armado até os dentes anunciava em vídeo que as meninas seriam vendidas como escravas, o que supõe que encontrariam facilmente compradores. Dias depois, outro vídeo, dessa vez as meninas com olhos aterrorizados, encolhidas, já amortalhadas em roupas islâmicas, são mostradas como “convertidas”.
O crime das meninas é imperdoável: frequentavam a escola, liam livros, abriam-se ao mundo, escapavam à truculência de um grupo de bandidos sanguinários que impõe às mulheres a treva da ignorância, o estupro no casamento forçado ainda na quase infância ou a escravidão, vendidas no mercado. Em pleno século 21 bárbaros usam a internet para transmitir uma mensagem de Neanderthal.
O ódio às mulheres é tão poderoso que não espera que elas cresçam para se manifestar. O medo de que não aceitem mais ser escravas as escraviza desde já como coisas desprezíveis que esses homens — não sei se cabe a palavra — acham que elas são. E, de quebra, fazem chantagem contra o governo, pedem a libertação de outros bandidos e conseguem sujar as páginas dos jornais com suas carantonhas.
É difícil ir além da imensa compaixão pelas crianças cujo terror é possível imaginar e que deixará marcas indeléveis. Além da piedade por essas mães que urram pedindo as filhas de volta e pelos pais que se embrenham sozinhos na floresta armados de pedaços de pau sabendo do armamento moderno posto nas mãos desses assassinos. Por quem?
E, no entanto, é preciso repetir que não se trata de um ato isolado, ainda que seja a expressão mais primitiva de um edifício ideológico. A violência contra as mulheres é constitutiva do fundamentalismo. Foi nessa mesma Nigéria que, há alguns anos, Amina Lawal, acusada de adultério, ia ser jogada em um buraco e lapidada pelo pai e pelos irmãos em nome da lei corânica. Uma imensa corrente de protesto pela internet, capitaneada pelo movimento internacional de mulheres, obteve a clemência no último momento. O mesmo aconteceu no Irã, com Sakineh, igualmente acusada de adultério, salva da morte por lapidação graças à comunidade internacional. Os talibãs no Afeganistão jogaram ácido no rosto das meninas que quiseram se educar, e, pela mesma razão, deram um tiro na cabeça de Malala Yousafzay, que, com 15 anos, estudava e defendia o direito das mulheres de estudar. Ela sobreviveu e se tornou um símbolo mundial de resistência à barbárie.
A questão da dignidade das mulheres e do seu lugar no mundo apenas começou a ser aflorada nas Conferências Mundiais da ONU sobre Direitos Humanos, em Viena, e sobre as Mulheres, em Pequim. É uma dura batalha que tem que prosseguir e traz à tona a necessidade do direito de asilo quando vítimas em seus países de perseguição religiosa que desemboca na pena de morte. O argumento do respeito ao relativismo cultural, invocado de maneira simplista, justifica todo tipo de brutalidade e impede que se estabeleça com clareza como se exerce a proteção internacional à vida e à liberdade dessas mulheres.
Só em 1994, em Viena, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, após noites brancas e debates ásperos em que enfrentamos a resistência empedernida de islamistas, a Declaração finalmente aprovada reconheceu que “os direitos das mulheres são direitos humanos’’. Penhorada, a metade da Humanidade agradeceu tamanha magnanimidade. Tive vontade de chorar...
O reconhecimento das mulheres como seres humanos com direitos, que vem do século passado, ainda vai se arrastar pelo século 21 e continuará sendo pedra de toque de conflitos internacionais. Porque no rapto das meninas nigerianas está presente um vírus que não é exclusivo do Boko Haram. Nesse caso, ele foi terrivelmente agressivo, mas não é um vírus desconhecido. Está presente sempre e onde quer que uma mulher seja humilhada.
O Globo, 24/5/2014