O Congresso está em dramática contagem regressiva, para manter a sua imagem diante do País. Varre do seu seio os denunciados por corrupção e se expõe a uma devastadora fila a se sentar no banco dos réus? Doutra parte, o que representam as manifestações antecipadas do Supremo objetivamente bloqueando averiguações ou rasgando outro rumo para o seu desfecho? O que significam as medidas judiciais defensivas, por enquanto, ao tramitar da cassação do deputado José Dirceu? O impeachment de Roberto Jefferson, de toda forma, torna as oposições prisioneiras do script iniciado pelo ex-deputado, possuído do velho fantasma do lacerdismo.
O depoimento, por outro lado, de Daniel Dantas abre outra dimensão ao nosso abuso econômico-político, e expõe a novidade do presente escândalo nacional. É que este regride ao governo anterior em toda esteira de combinações entre o "Opportunity" e a administração tucana, na esteira ambígua das privatizações brasileiras. Dantas declarou que foram seus sócios ou empregados exatamente na seqüência da atividade internacional das suas empresas, Pérsio Arida então Presidente do BNDES, e Helena Landau, responsável por toda a política crítica das mesmas privatizações. A perspectiva que se confirma a partir da vastidão e complexidade do depoimento de Dantas evidencia como o que começou pelas denúncias de Jefferson, na verdade põe em causa uma investigação ampla dos dinheiros públicos, do BNDES aos fundos de pensão, com as oportunidades pioneiras abertas pelo empresário do "Opportunity".
As cassações em vista perdem até a sua primeira relevância diante da investigação aberta a 21 de setembro. E a corrupção sistêmica já vai além da conta do voto à minuta, placar aceso no Congresso, saque certo do cheque no banco, no novo bate pronto das fidelidades em que se alicerçou o dito presidencialismo de coalizão. Nem é mais possível voltar-se ao banho-maria do velho abuso consentido na paga das despesas eleitorais pelos "caixas 2", vencido o pleito e as chamadas de fundos públicos para fechar a conta, dentro dos orçamentos dos partidos vencedores.
No quadro de nossos usos e costumes políticos, a prática envolvendo os melhores pedigrees partidários, como a do presidente Eduardo Azeredo, do PSDB. A virgindade política mineira expôs-se, por demais, como vestal de uma nova pregação da ética na política, de onde parte uma indignação agora reciclada contra o partido diferente. As punições, se se persistir no doa a quem doer, cobrado pelo próprio presidente, põem em causa toda uma prática política nacional cobrada ao nível da cidadania. Lula não quer panos quentes, sem negar a eventual contaminação do partido pela corrupção modernizada. Mas, quando as marchas organizadas contra o presidente vão ao grito de guerra, este é "todos fora". E o passivo do Congresso, como tal, antecipa-se antes de qualquer ida de Lula ao patíbulo. Ou melhor, à condição de réu poupado, à custa da renúncia à reeleição, com direito a exéquias em cova rasa, ao fim do mandato.
O relator da CPI dos Correios, Osmar Serraglio, denuncia no discurso das suposições, transformadas em fatos diante da opinião pública, não obstante falte-lhes as provas. A síndrome de uma cobrança nacional aí está, e ela parte da consciência generalizada de uma corrupção sistêmica, que define vilões coletivos, a partir do Congresso, e bocas na botija, por demais inequívocas na mecânica do mensalão. Não é necessária a delação premiada para a convicção do óbvio, na empreitada de Roberto Jefferson, e no carreio dos fundos públicos em cosanostra, a partir da elaboradíssima operação de cargos, verbas e votos, em que o PTB contratou a parceria milionária na máquina pública, desde o Governo Collor.
Serraglio aponta certo. O número inédito de parlamentares no presente escândalo começa com a oferta de amarelados cartões de visita, de bons serviços à compra de voto no Legislativo brasileiro. O mais gasto é o de Marcos Valério, lobista expert e comprovado na operação usual de liquidação dos caixas 2 de campanha, avalizado a partir da experiência mineira de 98, no regaço do PSDB então triunfante.
A opinião pública não tem mais dúvida do comprometimento exponencial do poder político com esquemões como o desenhado nesta sucessão aluvial de depoimentos. Fica, sim, a cobrança sobre a sofisticação das dependências, do entra e sai das contas, fianças e contratos futuros de verbas. Sobretudo, o fato consumado lubrificadíssimo de sua eficiência, a provocar talvez mais deslumbramento que desconfiança, quando Delúbio as viu como correntias na máquina do poder brasileiro.
Ao lado do "jeitinho", do tudo bem, esses dias extraordinários são o do assento, em nossa cultura, de uma desmesurada prática política, de uma ágora ateniense. Esta, hoje, entronizada no centro de um novo despertar de consciência do país, e na cobrança que mal começa e que antecipa culpabilidades imediatas por sobre as tentativas de chegada à cúpula do Planalto, para dar curso à proclamada indignação do povo. Serraglio mira certo, ao buscar a última instância dessa corrupção nos megacondicionamentos, em que um poder econômico nacional se levanta, negocia ainda o seu silêncio e, quiçá, o consagra, a partir de bodes expiatórios para o pelotão sumário de fuzilamento entrevisto nas primeiras idéias de cassação. O dossiê acumulado pelas CPIs, agora unificado, trará a furo o tamanho da atividade especulativa, entrada nas águas turvas da globalização; das entrelutas ainda do seu mercado "gris" e dos trunfos de uma competição ainda pirata, nas periferias desse mercado. As entressalas, os tapetes e as salas de espera da Portugal Telecom só estão a começo do cenário real do que se impõe investigar, e já.
O Lula "traído", e assim autoproclamado, é o que quer ver o jogo, por inteiro, na diferença entre ter o governo uma banda podre, nas suas maiores redes de negócios lá fora, ou gabar-se de ter o Governo no bolso, ou garantir a aplicação dos fundos de pensão, na novela, que mal começa, do paraíso internacional, oferecendo a aplicação da poupança trabalhadora do país. A negativa do governo em nelas participar só mostra a audácia, irmã gêmea da especulação, a que convida a massa de dinheiros que tremeluziu na operação Valério.
Entramos numa lógica do sistema que sobrepassou a Presidência, e qual é, para o Congresso, a verdadeira escolha de Sofia ante a nação? Identificar o abuso político, no plano do abuso econômico global? Ou persistir nas estritas e idílicas reformas políticas, num sistema que já não se pertence, diante de quem seduz, alicia e manda, mesmo?
Jornal do Commercio (RJ) 23/9/2005