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O centenário de Sartre

 

Nascido em 1905 está Jean-Paul Sartre sendo este ano homenageado, analisado, reeditado, não só como romancista e teatrólogo, mas também, e principalmente, como filósofo. De sua ficção, acaba a Nova Fronteira de reapresentar sua trilogia "Os caminhos da liberdade" que consta dos seguintes títulos: "A idade da razão", "Sursis" e "Com a morte na alma". O livro em que Sartre chegou mais longe na defesa de uma postura filosófica foi "O ser e o nada" (publicado pela Editora Vozes).


Como resumir o pensamento de Sartre? Talvez assim: quaisquer que sejam as lutas, quaisquer que sejam os resultados, o ser humano acaba chegando às portas da morte, onde nada consegue salvá-lo da angústia. Pode-se dizer que tudo começou em Kant; e veio, em linha direta, dar em Hegel, Kierkagaard, Nistzsche, Husserl, Heidegger e Sartre. Desde o momento em que se duvidou realmente da existência de uma realidade, independente do pensamento do homem, tudo se tornou possível. E tudo é possível. Se o homem não pode conhecer - e o conhecimento vinha sendo um componente do processo de hominização - então para que conhecer?


Assim, o racionalismo idealista kantiano postou-se no centro das idéias de Sartre. Veja-se a diferença entre Heidegger, antecessor de Sartre numa direção existencialista da interpretação do mundo, e Sartre. O primeiro deu ao livro básico de sua filosofia o título de " O ser e o tempo". O de Sartre é "O ser e o nada". Embora os dois se encontrem em detalhes de seus caminhos, Sartre levou ao extremo sua idéia do "em si", isto é, de que o ser é um "em si", despido de potência, "contingente, inexplicável e absurdo".


Não conseguimos chegar à realidade e eis Kant de novo. Sartre viu que não podia levar à frente uma idéia cuja rigidez impedia o ser de "tornar-se" em algo diferente, e criou então o "para si" ("pour soi"). O "para si" é o homem humano, o que tem relações com outros seres. Com isto, pode parecer que Sartre chegou à comunicão, à necessidade e ao elogio da comunicação.


De modo algum. Acha ele que, desde o momento em que o ser sai do "em si", na tentativa de ser um "para si", deixa de ser - isto é, passa a ser um "não-ser". Isto provoca, naturalmente, a inexistência de qualquer verdadeira comunicação entre os homens.


Explicando a coisa de um modo mais simples, é como se um homem - um "em-si" - estivesse contemplando a paisagem e nela visse objetos de seu conhecimento. Esses objetos são seus, inteiramente seus, pertencem-lhe, estão dominados pelo seu conhecimento. De repente, aparece outro homem que na mesma hora se apossa dos mesmos objetos como objetos do conhecimento dele. Passam os dois então a ser reciprocamente "para si". Um procura dominar o outro, transformar o outro em objeto para si, tenta eliminar a liberdade do outro, que é obrigado a lutar de volta - e eis a violência (frase de Sartre na peça "Huis Clos": "O Inferno é o outro ").


Em certas partes de seu livro "O ser e o nada" Sartre usa a inicial maiúscula para designar o "Outro". Acha que, se o Outro o persegue, ele também persegue o Outro. Diz: "Na experiência direta do Outro enquanto olhar, defendo-me experimentando o Outro, e resta-me a possibilidade de transformar o Outro em objeto. Mas, se o outro é objeto para mim enquanto me olha, então estou em perigo sem saber".


O Outro, para um homem, pode ser mulher e, para a mulher, o Outro pode ser homem. O desejo sexual comum acaba sendo uma tentativa do Outro, ou da Outra, de se apossar da subjetividade total de outro. Chama Sartre a atenção para o fato de Heidegger não fazer a menor alusão à sexualidade em sua analítica existencial, "de sorte que seu "em si" nos aparece como assexuado."


A partir desse capítulo (Capítulo 3 da Terceira Parte de "O ser a o nada") faz Sartre uma das melhores análises da sexualidade que um filósofo já ousou fazer, estudando o amor, a linguagem, a indiferença, o desejo, o ódio, o masoquismo, o sadismo. Trata ele também, aí do "Ser-Com", do "Nós" como plural do "Eu" num caso de amor ou como plural - de uma comunidade, uma igreja, um partido político ou todo um país.


De vez em quando, o homem abandona sua posição de "em si" e toma parte numa luta, numa revolução, numa guerra. O Sartre romancista, o Sartre do teatro surge então em toda a força de seu domínio da palavra, de que os três romances de "Os caminhos da liberdade" são o melhor exemplo. Neles, o homem que joga um "em si" contra o outro (com maiúscula ou não) deixou um painel gigantesco daquela guerra que pôs a França de joelhos. Poucas vezes a ficção universal chegou tão alto na recriação de um tempo.


"O ser e o nada" aparece no Brasil em tradução e com notas de Paulo Perdigão. "Com a morte na alma", o romance da França derrotada, é tradução de Sérgio Milliet.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 09/08/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 09/08/2005