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O carro com paixão

 

Garagem na sala. Pode até parecer loucura, mas alguns motoristas cobiçam tanto um veículo que, quando conseguem comprá-lo, colocam-no dentro de casa. Classificados/Veículos, 6 de novembro de 2005 


A paixonado por carros ele era, e desde criança. Sabia tudo sobre automóveis antigos. O Ford modelo A? Dizia em que ano havia sido projetado, quantos automóveis haviam sido vendidos na primeira leva. O Oldsmobile Ninety-Eigth 1957? Descrevia a grade do motor, o painel, o estofamento. O Chevrolet 1937? Sabia até a potência do motor e onde, exatamente, ficava o botão do arranque.


Se pudesse, ele se tornaria colecionador. Compraria lendários modelos, levaria para sua casa, montaria uma exposição permanente. Mas isso não podia fazer. Em primeiro lugar, porque não tinha dinheiro. Auxiliar de escritório, mal ganhava para sustentar a si próprio e à mulher. Em segundo lugar, não tinha espaço para tais carrões: morava numa casinha de subúrbio, sem garagem, sem quintal.


Mas aí o destino interveio. Através de um amigo ficou sabendo do falecimento de um famoso colecionador - cuja esposa, que detestava a paixão do marido, estava se desembaraçando dos carros por preços relativamente acessíveis. Esperançoso, foi até lá. Mas chegou tarde: todos os antigos modelos haviam sido comprados. Com exceção de uma enorme limusine, daquelas usadas em Nova York para transportar celebridades e que ninguém comprara, exatamente por causa do tamanho.


- Sabe de uma coisa? - disse a senhora. - Se você quiser, pode levar esse trambolho de graça. Já estou farta dessa coisa.


Quase sem acreditar no que ouvia, ele entrou na limusine e deu a partida. A mulher abanou para ele e entrou na casa, aliás um palacete. Tripulando o carrão (e chamando a atenção de todo mundo) foi para casa.


A mulher se desesperou. Onde colocariam aquilo? Dentro de casa, disse ele. Naquele fim de semana demoliu a parede da frente, introduziu a limusine no recesso do lar e tornou a edificar a parede. Mas o veículo era tão grande que tiveram de retirar todos os móveis da sala-quarto, inclusive a cama. O que não seria um problema: ele deu o jeito de transformar a limusine em quarto e em sala. A esposa, que nunca reclamava de nada, aceitou o arranjo. E, assim, realizaram um sonho dele: moravam num automóvel, aliás com bastante conforto.


Poderiam ter sido felizes para todo o sempre, se não fosse o mecânico que ele chamou para consertar um pequeno defeito no carro. A mulher se apaixonou pelo homem, aliás muito bonito, e fugiu com ele.


O colecionador viu os dois saindo, ela de mala na mão. Pensou em ir atrás deles, na limusine. Mas para isso teria de usar o carrão para demolir a parede da frente. E ele jamais arranharia uma pintura tão bem conservada.




Folha de São Paulo (São Paulo) 14/11/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 14/11/2005